Raquel Marques Landgra
Existe uma substância, na verdade um aglomerado de substâncias, que mata mais de 8 milhões de pessoas anualmente no mundo, sendo cerca de 161 mil apenas no Brasil. Uma mistura de 4720 substâncias tóxicas, entre as quais mais de 43 são cancerígenas, incluindo compostos como arsênico, amônia, cetonas, chumbo, resíduos de agrotóxicos e substâncias radioativas, está no bolso e boca de 1,1 bilhões de pessoas por todo o mundo. Estes dados, que podem alterar a sua percepção sobre o produto e influenciar no seu uso ou não, não são expostos pela indústria que o fabrica.Caso fossem amplamente divulgados estes números, você andaria com algo tão perigoso assim no bolso? Aceitaria expor a si, seus familiares e entes queridos a ele? Eu acredito que a grande maioria respondeu que não, pois ninguém quer ser responsável por propagar uma pandemia que mata mais do que a COVID-19 matou em 2021.
Com mais de 8 mil anos de história e cultivado inicialmente pelos nativos americanos, o tabaco se popularizou em todo o mundo, sendo conhecido e vendido como um instrumento de poder, socialização e status. Usado por grandes estrelas em filmes, séries e tendo comerciais por anos na televisão e rádios, o cigarro frequentava quase todos os espaços, o que permitiu a sua popularização e um aumento circunstancial no número de seus usuários, especialmente entre os nascidos em 1945 e 1964. Este dado foi melhor analisado por uma pesquisa realizada pela SulAmérica saúde, que evidenciou que a geração dos baby boomers, são as que mais consomem o tabaco, e também a com maior número de óbitos em decorrência a ele.
No entanto, não podemos nos deixar enganar pelo passado: as propagandas pró tabaco cruzaram gerações. Não é exclusividade dos baby boomers os filmes com protagonistas fumando. Ao analisar filmes e séries atuais, como “o turista”, lançado em 2010, em que Angelina Jolie aparece diversas vezes fumando, a série “ Stranger Things” e até mesmo filmes da Disney como “101 Dálmatas”, “Pinóquio”, “Alice no País das Maravilhas”, entre diversos outros, é possível notar que o cigarro não é usado exclusivamente por vilões ou omitido das cenas, os personagens principais e personagens de presença importante na trama também fazem uso do tabaco. O uso do cigarro é uma arma poderosa nas mãos do cinema, e hoje dos influenciadores das mídias, que na tentativa de demonstrar poder, ambição, rebeldia e sofisticação fazem uso deste aparato. Durante a década de 80, houve um incentivo massivo da indústria do tabaco em Hollywood, colocando os produtos em sinalizações positivas, distribuindo cigarros para os atores utilizarem durante as filmagens e em público para que fossem fotografados. Embora esta atitude não seja escancarada como foi nas décadas anteriores, é inegável que o tabagismo aumentou circunstancialmente nas telas e fora delas, com cantores e atores utilizando novamente cigarros tradicionais e eletrônicos em público, como é o caso do ator Johnny Depp, Leonardo DiCaprio e o cantor Bruno Mars.
Com o passar dos anos e as novas tecnologias e projetos de leis, houve uma redução considerável no número de fumantes, segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) o percentual de fumantes entre 2013 e 2019 caiu em média 2%, e estudos atuais mostram que este número continua em queda. Esta realidade pode ser atribuída às diversas ferramentas utilizadas tanto pelo governo, quanto pelas instituições privadas, entre elas, destacam-se o aumento do imposto sobre o produto, as propagandas abordando os riscos do uso, a limitação dos espaços para fumar e o aumento da campanha “pare de fumar” realizada pelo governo federal na maioria das cidades brasileiras. Entre os anos de 2006 e 2013 houve um aumento total de 116% no valor do maço do cigarro, não apenas no Brasil, mas em grande parte do mundo, o que resultou em uma queda de 28% na venda deste produto. Um outro estudo,realizado pela universidade de Waterloo, no Canadá, demonstrou também uma redução de 50% dos números de fumantes entre 1989 e 2010 devido ao aumento dos impostos, logo esta medida fiscal se mostrou a principal ferramenta para combater o uso de substâncias tóxicas, como pode ser observado na indústria das bebidas alcoólicas e de fertilizantes e agrotóxicos.
Em 2016, o estudo da Sul América mostrou que o tabagismo estava reduzindo entre os jovens, conhecidos como a Geração Z, os nascidos a partir de 1991. Os inquiridos afirmaram massivamente, cerca de 86% dos entrevistados, nunca terem experimentado cigarro e esta aversão estava pautada no maior acesso à informação.
Porém com o advento dos cigarros eletrônicos, estes números mudaram drasticamente. Mesmo com a crescente diminuição do uso do cigarro, uma pesquisa realizada pela Inteligência em Pesquisa e Consultoria (IPEC), mostrou que mais de 2,2 milhões de pessoas usam o cigarro eletrônico, também conhecidos como vapes.
Um dispositivo criado inicialmente para auxiliar os usuários do cigarro convencional a gradualmente abandonarem o vício, o vape se tornou uma moda global. O cigarro eletrônico trata-se de um pequeno dispositivo que pode conter a fragrância que o usuário desejar e possui dosagens de nicotina variavel entre os modelos e embora com um fundamento nobre - ajudar a combater o vício em nicotina -, pesquisas mostram que os vapes não são largamente usados no tratamento do vício, mas sim com fins recreativos, se tornando presença quase unânime nos shows, festas, eventos sociais,tomando espaço nas escolas e ambientes fechados, o que assim como vivenciado com o cigarro pela geração boomer, influência ainda mais no uso da substância.
Por não incomodar olfativamente as pessoas ao redor, uma vez que não possui o odor característico de tabaco queimado, o cigarro eletrônico acaba adentrando todos os espaços, e flutua entre os diferentes públicos. Por falta de dados que comprovem a segurança do cigarro eletrônico, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), proibiu desde 2009 a venda deste produto, no entanto ele é facilmente encontrado na internet e lojas físicas, basta uma busca simples no google ou uma mensagem no grupo da festa que diversos vendedores aparecem com os mais diversos preços e produtos.
Não bastando a venda ilegal nas festas e shows, a venda dos PODS, outra nomenclatura para o cigarro eletrônico, também é direcionada pela inteligência artificial das plataformas, ao consumir conteúdos que falam sobre eles, curtir fotos que mostramo produto ou pesquisar em qualquer plataforma sobre ele, diversas propagandas direcionadas passam a aparecer nas plataformas digitais. Esta ferramenta, muito usada para influenciar os usuários ao consumo de diversos produtos, está agitando o mercado ilegal dos cigarros eletrônicos e aumentando o número de usuários. O algoritmo usado atualmente nas mídias sociais é uma enorme ferramenta para o marketing, uma vez que permite que a empresa identifique seu grupo, criando campanhas mais eficazes e tenha ciclos que coincidem com o fim do produto anteriormente comprado.Toda esta estratégia direcionada para um produto que causa dependência e danos à saúde, mostra-se um risco à saúde pública, é corresponsável pelo aumento de 600% das vendas nos últimos 6 anos.
Segundo o Instituto do Coração do Hospital das Clínicas (InCor), os usuários de vape apresentam níveis de nicotina equivalentes ao consumo de 20 cigarros tradicionais por dia. Esta realidade não se deve apenas a maior eliminação de nicotina que muitos cigarros eletrônicos apresentam, mas ao fato de aos poucos o usuário vai aumentando o consumo da nicotina, posto que se com o cigarro tradicional uma pessoa saía para fumar 3 vezes durante seu expediente de 8h, fumando 1 cigarro neste intervalo, com o vape e a sua facilidade de uso, esta pessoa passa a fumar mais vezes no dia e a realizar mais tragadas do que um cigarro convencional possui. Este fato proporciona que doenças pulmonares como “pulmão em vidro fosco”, enfisema e a doença pulmonar obstrutiva (DPOC) propriamente ditas ocorrem mais cedo. Estamos a pouco tempo comercializando os cigarros eletrônicos e ainda assim, diversas doenças pulmonares, sistêmicas, cardiovasculares e até mesmo óbitos já são atribuídos ao uso dele.
O cigarro eletrônico, além de ser uma modernização do ato de fumar, o que transpassa a “ostentação” entre os usuários, ainda pode gerar um sentimento de pertencimento entre os jovens, e este é um sentimento muito importante na adolescência. Dado a isto, torna-se difícil desvincular o público do aparelho, e logo, explicar os malefícios que o uso dos vapes pode causar, como problemas pulmonares, DPOC, doenças cardíacas como infarto agudo e aterosclerose, redução da capacidade cognitiva e o vício da nicotina propriamente dito. Como foi feito com o cigarro tradicional, é necessário e urgente que, ademais da proibição de venda e compra e a fiscalização da mesma, sejam montadas campanhas de conscientização e políticas públicas de controle, que sejam efetivas e comuniquem aos grupos de consumo, principalmente para os grupos jovens, como desde o primeiro ano do ensino médio, faixa em que normalmente se inicia o contato com estas substâncias.
As campanhas de conscientização se fazem ainda mais importantes, uma vez que há campanhas que vendem a imagem do “cigarro sem nicotina”, do “vape seguro”, que também tem reforçado o uso entre os jovens,sem mencionar como o vape também é capaz de causar danos irreversíveis aos pulmões, mudanças no endotélio destes, nos vasos e outras estruturas deste órgão tão sensível. Embora seja um dos maiores órgãos do corpo humano, os pulmões não possuem alta capacidade de regeneração, logo a constante inalação de vapor, que se aproxima dos 350°C, e do acetato de vitamina E causam mudanças irreversíveis a ele, o que levará o usuário a consequências que serão sentidas pelo resto da vida, como é o caso da jovem de 22 anos que precisou passar por uma cirurgia de emergência pelo uso deste aparelho.
A discussão sobre a legalização do cigarro eletrônico no Brasil, além de muito necessária, possui duas vertentes de importante peso: deve-se legalizá-lo para regulamentar os produtos que estão contidos neles, assim como aumentar os impostos de compra, na tentativa de mitigar o seu consumo. Mas por outro lado, a legalização de drogas como o álcool e o tabaco convencional não reduziram o consumo destes, pelo contrário, ainda há um número massivo de usuários. Vivemos em uma sociedade onde milhões de pessoas sofrem com o legado das drogas, legalizadas ou não, e hoje é possível notar até mesmo as consequências que os antidepressivos e outras drogas farmacológicas como os opióides causam na população.Logo a maior discussão em torno dos cigarros, vapes, PODs ou qualquer outra denominação é: O quanto de impacto estamos dispostos a permitir que estes aparelhos causam na sociedade?
Durante muitos anos, fumar foi atribuído ao poder, assim como o consumo de whisky ao final do dia e possuir os carros do ano.Hoje entre as séries e filmes jovens, nota-se o uso de entorpecentes, especialmente as drogas psicodélicas como sinônimo deste poder, rebeldia e liberdade. Até quando será aceitável que coisas nocivas sejam referências de prestígio social? Estas referências são uma demanda da sociedade que perdura nas telas ou é um incentivo das telas que perdura na população? Inquestionavelmente as indústrias do tabaco, do álcool e das drogas estão em constante crescimento, assim como a incidência de doenças causadas por elas.
Ao buscar pela história do tabaco no Brasil, ve-se um atraso na sua regulamentação, uma vez que apenas no final de 1990 e em meados de 2010 houveram leis regulamentando as propagandas e os locais permitidos de uso. No que tange o cigarros eletrônicos, este atraso não deve ocorrer, assim como mais de 500 anos de uso indiscriminado do tabaco causam danos circunstâncias a saúde pública, como a morte de mais de 28 mil pessoas, em 2023, apenas por câncer de pulmão, a falta de regulamentação dos vapes também causa e continuará a causar danos severos a população brasileira.
O México no final de 2023 proibiu a venda, distribuição e consumo do cigarro eletrônico, a Alemanha por outro lado, regulamentou a sua venda e produção, obrigando as empresas a cumprirem uma série de especificações, incluindo advertências sobre o uso nas embalagens, e a Inglaterra, embora tenha regulamentado a venda e distribuição anteriormente, vêm assumindo uma posição de proibição da venda em decorrência do aumento do consumo entre os jovens no país, tendo apresentado um projeto de lei no início de 2024. Por se tratar de um assunto de saúde pública, o governo brasileiro, assim como os demais países, também deve se posicionar, regulamentando a venda destes produtos, se não as proibindo completamente, aplicando medidas que anteriormente se mostraram eficazes na diminuição do consumo de substâncias tóxicas, como cobrando impostos, obrigando que as embalagens mostrem os riscos que o uso do produto pode trazer, fazendo campanhas e propagandas sobre os malefícios do uso, entre outras; dando a pauta o caráter necessário que uma questão de saúde pública pede.
20 de Fevereiro de 2024
Curadoria do Fórum Social Mundial da Saúde e Seguridade Social
Os trabalhos do FSMSSS são revisados por Isadora Borba e Rafaela Venturella De Negri
Referências:
Perfeito 👏🏻👏🏻👏🏻