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Anneliese Regina e Juliana Loureiro

Terra à deriva: Urgência e Justiça Climática

Atualizado: 30 de jul.

Entenda como a emergência climática se articula com desigualdades e injustiças sociais e o papel da representatividade política de grupos minoritários na luta por justiça climática


por Anneliese Regina Feiler e Juliana Loureiro


Adenir Ferri, 49 anos,comerciante, um dos afetados pelas enchentes do Rio Grande do Sul. Foto: Thales Renato | Mídia NINJA



A justiça climática é um conceito que emergiu na década de 1980 e que se refere à busca por garantir que as políticas e ações relacionadas à mitigação e adaptação das mudanças climáticas sejam implementadas de maneira equitativa e justa, levando em consideração os impactos desproporcionais que a crise climática tem sobre diferentes grupos sociais, especialmente os mais vulneráveis e marginalizados. Isso inclui não apenas distribuir os ônus e benefícios de forma equitativa, mas também envolver as comunidades afetadas na tomada de decisões e garantir sua participação ativa nos processos de desenvolvimento de políticas climáticas.


A primeira menção explícita da justiça climática em um tratado internacional ocorreu no Acordo de Paris, adotado em 2015 durante a 21ª Conferência das Partes (COP21) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC). O Acordo de Paris reconhece a importância da justiça climática ao afirmar a necessidade de considerar as responsabilidades comuns, porém diferenciadas, e as respectivas capacidades dos países frente às mudanças climáticas. Para abordar o tema da justiça climática, no entanto, entendemos que é necessário traçar um panorama de como está hoje a situação climática do planeta.


2023: o ano mais quente da história


No final de 2023, cientistas já estimavam que este poderia ter sido o ano mais quente do planeta Terra desde 1850, quando os registros começaram a ser realizados. No dia 19 de março de 2024, a confirmação veio, através do lançamento do relatório Estado do Clima Global em 2023, realizado pela Organização Meteorológica Mundial. Segundo o documento, editado anualmente pela agência especializada das Nações Unidas, a temperatura média global ficou 1,45ºC acima dos níveis pré-industriais em 2023, se aproximando do limite de 1,5ºC de aquecimento determinado pelo Acordo de Paris. Mesmo que esse seja um aquecimento temporário agravado pelo El Niño, o ano de 2023 “foi uma espécie de amostra grátis do que é viver em um planeta que falhe em cumprir a meta do acordo do clima”, sugere matéria do Observatório do Clima, uma das maiores referências em cobertura da agenda climática no Brasil.


Apesar de cientistas e especialistas monitorarem e alertarem sobre as alterações do clima já há algumas décadas, o aumento excedeu as previsões feitas por modelos climáticos estatísticos, que previam apenas 20% de probabilidade de 2023 ser o ano mais quente da história. De acordo com as análises, as temperaturas médias das superfícies da terra e do mar ultrapassaram os recordes anteriores durante todos os meses do ano em até 0,2ºC. 


A constatação levou a um alerta no meio científico, uma vez que trouxe fortes indícios de que o aquecimento global já está alterando a forma como o sistema climático funciona, muito mais cedo do que se previa. Além disso, ela dá indícios de que os modelos e inferências matemáticas e estatísticas baseados em acontecimentos passados ​​são menos precisos ​​do que se pensava, trazendo uma “camada extra de incerteza às previsões”, nas palavras de Gavin Schmidt, climatologista e diretor do Instituto Goddard de Estudos Espaciais da NASA.


No Brasil, picos de calor foram amplamente noticiados em todas as regiões do país. Um levantamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais revela que os registros de onda de calor no Brasil dispararam nos últimos 30 anos, saltando de 7 para 52 registros por ano. Em 2024, os recordes também já começam a ser registrados. A nível global, o mês de janeiro foi 1,77 °C mais quente do que a estimativa da média de fevereiro para o período pré-industrial (1850-1900), de acordo com monitoramento publicado pelo Copernicus, serviço climático europeu.


De ‘mudança’ para a ‘emergência’ climática


Esse tipo de alteração nos padrões climáticos levou à afirmativa, por parte do Secretário Geral da ONU, de que efetivamente entramos na era da emergência climática. “A era do aquecimento global acabou. A era da ebulição global chegou”, disse Guterres em uma coletiva de imprensa em julho do ano passado. Em outra ocasião, em novembro, o secretário geral falou em ‘colapso climático’.


As afirmativas e termos usados pela liderança da ONU são corroboradas não apenas pela evidência concreta de fenômenos como as enchentes que aconteceram no Rio Grande do Sul, mas também pela ciência. “Eu creio que o que está acontecendo no Brasil neste ano e também outros fenômenos extremos que ocorreram nos Estados Unidos, na Europa, na China e na Índia, demonstram claramente, e não há qualquer possibilidade de erro no que eu vou falar, que entramos efetivamente no que poderíamos chamar de emergência climática ou de ebulição global. Passamos da etapa do aquecimento”, afirmou Paulo Artaxo, professor titular do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e integrante do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), em entrevista ao portal da Fiocruz.


Na prática, isso quer dizer que entramos em uma nova fase que coloca em risco muitas das nossas estruturas socioeconômicas, como a indústria, a agricultura e o planejamento urbano. Todas essas áreas já começam a sofrer uma nova magnitude de impacto, com pedidos emergenciais de ajuda por parte tanto de setores da economia quanto dos próprios agentes de estados frente a fenômenos climáticos extremos. Possivelmente o Rio Grande do Sul seja um caso emblemático nesse sentido porque, pela primeira vez, um estado inteiro - com dimensões territoriais equivalentes a países como a Itália -, foi atingido.


De epidemias a migrações forçadas, os efeitos múltiplos da crise climática


Essas alterações no padrão climático da Terra também vinham sendo sentidas diretamente pela população mesmo antes do ocorrido no Rio Grande do Sul. Uma pesquisa divulgada pelo IPEC em parceria com o Instituto Pólis e o Instituto Clima e Sociedade no final de 2023, mostrou que 7 em cada 10 brasileiros entrevistados foram atingidos por eventos extremos como pandemias, chuvas fortes, alagamentos e falta d’água. De todos os eventos citados, a seca e a falta de abastecimento de água são os que mais preocupam os entrevistados. Ano a ano, esses eventos têm se intensificado e gerado múltiplos impactos: mortes, epidemias, endemias e migrações forçadas.


A própria epidemia de dengue no Brasil, que até o momento que escrevemos este texto atingiu mais de 2,9 milhões de casos prováveis e 1.116 vítimas fatais, vem sendo associada por especialistas aos fenômenos climáticos. Antes concentrada em áreas úmidas e litorâneas, a doença vem avançando e atingindo o Cerrado, uma região já muito afetada pelo desmatamento e as alterações no clima. Uma pesquisa publicada em fevereiro deste ano liderada pelo pesquisador Christóvão Barcelos, do Observatório de Clima e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), mostrou que a área de transmissão da dengue no Brasil passou de 2 milhões de km² para 7 milhões de km² entre 2001 e 2011, tornando-se mais do que três vezes maior em 10 anos. Segundo o pesquisador, “essas áreas apresentavam 5 dias de anomalia de calor e, agora, são 20, 30 dias de calor acima da média ao longo do verão, o que dispara o processo de transmissão de dengue, tanto por causa do mosquito quanto pela circulação de pessoas”.


Os mais impactados pela emergência climática


Essas alterações nos padrões climáticos são hoje uma das maiores ameaças enfrentadas pela humanidade, mas seus impactos não são distribuídos de forma igualitária. Populações marginalizadas que vivem em ambientes de maior risco ou que dependem diretamente de um ecossistema específico para sobreviver - um rio, oceano ou solo, por exemplo -, como as comunidades indígenas, ribeirinhas e marisqueiras, são desproporcionalmente atingidas. A perda de terras, a contaminação da água e a erosão costeira representam ameaças significativas para seus meios de vida e culturas tradicionais.


No contexto das grandes cidades, o racismo ambiental  se evidencia no fato de que são as populações negras ou racializadas que predominam em regiões periféricas, com menos infraestrutura de habitação e acesso ao direito à moradia adequada. É na periferia que predominam construções irregulares em morros e encostas, que são diretamente atingidas em caso de fenômenos climáticos extremos como temporais e alagamentos, além de sofrerem diretamente com crises de abastecimento de água e luz e ausência de saneamento básico.  


Também são nas regiões afastadas dos centros das cidades que  instalações industriais poluentes são deliberadamente localizadas. As chamadas ‘zonas de sacrifício’ são grandes áreas geográficas onde a população local é exposta a impactos ambientais adversos como resultado da instalação de infraestrutura industrial pesada e/ou de depósitos de resíduos tóxicos oriundos da mineração, refinarias de petróleo e usinas de energia. Essas comunidades muitas vezes enfrentam maior exposição a poluentes atmosféricos e contaminação hídrica, que têm sido associados a uma série de problemas de saúde, incluindo asma, câncer e doenças cardíacas, além de muitas vezes perderem seus meios de subsistência e se verem forçadas a se deslocar. 


Ao lado dos marcadores e indicadores de raça, as desigualdades socioeconômicas e de gênero também desempenham um papel crucial e se articulam nessa determinação de quem é mais vulnerável aos impactos climáticos. As comunidades mais pobres muitas vezes carecem dos recursos necessários para se adaptar às mudanças e se recuperar de desastres naturais. Além disso, a falta de acesso a empregos bem remunerados e a oportunidades educacionais pode perpetuar o ciclo de vulnerabilidade socioambiental. 


No âmbito das diferenças de gênero, ainda hoje, em diversos contextos, as mulheres têm acesso limitado aos recursos e ao poder de decisão, o que as coloca em desvantagem na busca por adaptação e respostas eficazes às ameaças climáticas. Segundo estimativa da ONU Mulheres, as mudanças climáticas devem empurrar mais de 158 milhões de mulheres e meninas para a pobreza e levar mais 236 milhões de mulheres à fome nos próximos 30 anos. Os dados foram divulgados pelo relatório Feminist Climate Justice, lançado no final de 2023 durante a realização da COP 28. 


As mulheres desempenham papéis cruciais na agricultura de subsistência e na gestão dos recursos naturais. Historicamente também cabe a elas o papel do cuidado da casa e de outros seres humanos - crianças e idosos,  garantindo o fornecimento de alimento e água. Quando eventos extremos e desastres acontecem, são as mulheres que se desdobram para conseguir meios e recursos para reconstruir, limpar e cuidar do ambiente doméstico e comunitário. Como lembra um artigo da plataforma Gênero e Clima, quando se veem forçadas a deixarem as moradias permanentemente, “as mulheres periféricas não só perdem a casa, como também a rede de apoio – a vizinhança com quem muitas vezes dividem os trabalhos de cuidado das crianças, por exemplo”.


Dessa forma, os trabalhos domésticos não-remunerados, frequentemente  ‘invisíveis’ e socialmente vistos como algo natural à mulher, trazem uma sobrecarga física e mental extra, o que as torna particularmente suscetíveis e pressionadas pelos  impactos das mudanças climáticas. Uma abordagem interseccional¹ para a justiça climática reconhece a interconexão entre essas diversas formas de opressão e busca abordar as raízes estruturais da desigualdade. Para isso, é necessário promover políticas que levem em conta as diferentes necessidades e experiências das populações mais afetadas, bem como garantir sua participação ativa nos processos de tomada de decisão.


Participação política e representatividade nas decisões climáticas 


A participação política é um elemento fundamental para garantir que as políticas climáticas sejam inclusivas e eficazes. Isso envolve não apenas a representatividade adequada de diferentes grupos na arena política, mas também a incorporação da interseccionalidade, reconhecendo as interconexões entre diferentes formas de marginalização e como elas se articulam com os efeitos da crise climática. A falta dessa representatividade e a ausência de uma perspectiva interseccional podem comprometer seriamente a eficácia das políticas públicas de meio ambiente e clima, uma vez que pessoas distantes da realidade da maior parte da população, que representam apenas um ou alguns grupos sociais específicos, são responsáveis por tomar decisões políticas e orçamentárias que levam à formulação dessas políticas que definem as vidas de milhões de pessoas.


Um exemplo disso pode ser observado nas Conferências das Partes (COPs) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC). Embora essas conferências sejam cruciais para a formulação de políticas climáticas globais, a representatividade de grupos marginalizados, como pessoas negras e mulheres, é insuficiente. Um artigo da GELEDÉS Instituto da Mulher Negra destacou a ausência de um grupo de representação própria de pessoas negras na COP28, ressaltando a falta de diversidade étnico-racial dentro dos espaços de tomada de decisão da Conferência. Apesar de comemorar o fato de o Estado brasileiro ter aderido à proposição do Instituto de incluir o termo “afrodescendentes” e associar raça e gênero em um dos principais documentos que estavam na mesa de negociação, o GST – Global Stocktake ou Balanço Geral, o documento final aprovado não incorporou as recomendações, deixando de fora o termo raça.


Para abordar essas lacunas na representatividade,  algumas iniciativas têm sido propostas. Um exemplo notável é o Manifesto de Entidades pela Paridade de Gênero na COP30, divulgado no 8 de março deste ano,  demandando paridade de gênero, raça, etnia, classe social, geração, identidade de gênero e orientação sexual como princípios fundamentais tanto durante a organização do evento quanto nas negociações. A COP30 ocorrerá em 2025, em Belém (PA). O manifesto, assinado por 51 organizações da sociedade civil, foi entregue aos ministérios de Relações Exteriores, Meio Ambiente e Mudança Climática e Igualdade Racial. Essa demanda de representatividade e participação política ativa das comunidades e grupos afetados na tomada de decisões e nos processos de desenvolvimento de políticas climáticas é um passo fundamental para a garantia de justiça climática.


Em conclusão, a emergência climática requer uma abordagem urgente e inclusiva que leve em consideração os princípios fundamentais da justiça climática de uma perspectiva interseccional. Diante dos desafios impostos, é imperativo reconhecer e abordar as desigualdades existentes em sua totalidade, incorporando uma perspectiva que considere as diferentes formas de opressão e marginalização. A participação política e a representatividade adequada de todos os grupos afetados, especialmente aqueles historicamente marginalizados, são essenciais para garantir que as políticas climáticas sejam eficazes, equitativas e verdadeiramente inclusivas. Somente através de esforços colaborativos e compromissos nos níveis nacionais e globais podemos enfrentar a questão mais urgente do nosso tempo com justiça e responsabilidade, assegurando um futuro para todas as pessoas e o planeta.



¹ A interseccionalidade é um conceito desenvolvido no contexto dos estudos feministas e crítica feminista que se ampliou e foi além do meio acadêmico e científico. A ideia central da é que as identidades e as experiências das pessoas são moldadas por múltiplos fatores, como gênero, raça, classe social, orientação sexual, identidade de gênero, habilidades físicas e mentais, entre outros. Esses fatores não operam isoladamente, mas interagem entre si, criando sistemas complexos de privilégio e opressão.


Anneliese Feiler é advogada, pesquisadora nas áreas de direito empresarial, direitos humanos e direito internacional e curadora do FSMSSS


Juliana Loureiro é jornalista, antropóloga, mestre em Antropologia Social e trabalha em projetos de comunicação e mobilização nas áreas de direitos humanos, feminismo, clima e meio ambiente


Todas as produções do FSMSSS são revisadas por Isadora Borba e Rafaela Venturella De Negri


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