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O espectro da fome na Argentina

Atualizado: 31 de out. de 2021


O quadro social latino-americano e a crise argentina


Este espaço vem tratando do panorama social precário predominante na América Latina, sobretudo no atual contexto da pandemia da COVID-19. À sua maneira, cada Estado ao sul do Rio Grande passa por dificuldades particulares que estão associadas ao subdesenvolvimento econômico. Neste sentido pode-se abordar do Haiti, que vive interminável instabilidade política, ao Brasil, onde populações indígenas travam custosos litígios por seus direitos fundamentais. As sociedades latinas, assim, engajam-se em perenes lutas para superar os desafios impostos pelas crises econômica, social e sanitária, todas aptas a afetar a resiliência dos seus sistemas de seguridade social.

Um caso particularmente complexo neste sentido é o argentino, que se encontra no epicentro do crescimento da pobreza e da miséria no subcontinente. Tal situação lhe assegura a ingrata posição de ser, atualmente, o único país latino mais pobre do que era há vinte anos, na virada do milênio. Em verdade, tal cenário, bastante pronunciado desde bem antes da pandemia, foi bastante agravado nos últimos dezoito meses. O país platino foi responsável por instituir uma das mais severas e duradouras quarentenas do planeta, o que não impediu, contudo, a devastadora propagação do vírus em suas grandes cidades. Além disso, a crise sanitária prejudicou fortemente as perspectivas econômicas argentinas para os anos vindouros e colocou parte da população local sob a sombra da insegurança alimentar - quadro no qual os indivíduos não possuem um acesso regular aos alimentos de qualidade em quantidades ideais para sua sobrevivência.

Com efeito, a atividade econômica na Argentina sofreu forte retração e os seus índices socioeconômicos pioraram: o Produto Interno Bruto (PIB) caiu em torno de 10% em 2020, a inflação acumulada do ano até outubro de 2021 é de 51,1% e aproximadamente 11% da população em idade para trabalhar está desempregada. Esse quadro indica um estado de estagflação – falta e crescimento da economia aliada a altos índices de inflação – que agrava as condições socioeconômicas dos argentinos, sendo que, neste momento, aproximadamente um quarto da população se encontra em situação de efetiva pobreza. Ademais, segundo dados do Worldometer, a Argentina apresenta-se como o nono país com mais mortes per capita por COVID-19 no planeta, tendo contabilizado, até o penúltimo trimestre de 2021, mais de 115 mil óbitos.


A fome ronda Buenos Aires

Tal qual realizado por inúmeros governos ao redor do planeta, o Estado portenho não demorou para autorizar emissões monetárias e ampliar o alcance de sua política fiscal para tentar conter os efeitos da crise econômica que se seguiu à eclosão da pandemia. Ainda no começo de 2020, aprovou-se um aumento nas concessões da Asignación Universal por Hijo, programa que se assemelha ao Bolsa Família brasileiro, a fim de que se mantivessem padrões de vida minimamente aceitáveis para as populações argentinas de baixa renda; também foi empregado o congelamento das tarifas de serviços públicos, tal qual água e luz. Para 2021, contudo, a manutenção destes programas se tornou insustentável, já que a ampliação dos gastos do governo esbarrou em limitações de ordem fiscal oriundas da falta de recursos orçamentários e de compromissos internacionais com a contenção do endividamento público assumidos ainda durante a gestão de Maurício Macri (2015-2019).

O aumento dos índices de fome foi corolário natural deste cenário. A miserabilidade, situação em que não há recursos para a aquisição de insumos mais básicos, como artigos de vestimentas ou alimentos, cresceu de forma aguda entre os argentinos e levou uma vasta porção destes ao convívio com a fome. O contexto de crescente inflação, ainda, tem repercussões bastante negativas para a alimentação da população pauperizada: à medida que crescem os preços dos alimentos e que porção considerável do orçamento das famílias é destinado ao consumo destes bens, os núcleos familiares deixam de consumir determinados gêneros alimentícios, o que as coloca sob o espectro da insegurança alimentar.

Algumas organizações locais de assistência - os chamados comedores - e iniciativas governamentais, levadas a cabo pelo Ministério do Desenvolvimento argentino, têm fornecido alimentos para tais populações. Entretanto, a falta de ajuda para o pagamento dos caminhões, responsáveis por distribuir os mantimentos, e o desabastecimento dos próprios alimentos fizeram com que muitos destes comedores fechassem suas portas. A dramática situação da insegurança alimentar que tanto se vê no Brasil – e que teve no episódio da venda de ossos em um açougue, em Santa Catarina, um nefasto exemplo - ecoa na Argentina.

Atualmente, pende a aprovação de uma legislação local que estipule a promoção da alimentação saudável em território portenho (Ley de Promoción de la Alimentación Saludable). Tal medida, apoiada pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), poderia trazer dividendos importantes para a luta contra a fome e a desnutrição. A normativa obriga a prestação, por parte dos produtores, de maiores informações sobre os componentes nutricionais dos alimentos, determinando o etiquetamento frontal de dados relativos à composição de açúcares e gorduras nos respectivos. Há, afinal, um importante liame entre obesidade e desnutrição, visto que produtos alimentícios produzidos sob a lógica do fast food são geralmente mais baratos e consequentemente ingeridos em maior quantidade pela população de baixa renda, a despeito de sua menor qualidade nutricional e dos riscos à saúde que estão vinculados ao seu consumo.


Haverá uma saída para a Argentina?


Se a solução da crise alimentar é medida absolutamente urgente para a garantia de um mínimo de dignidade para os argentinos, as perspectivas para o desenvolvimento futuro do país platino também inspiram preocupação.

A educação é um tema que precisa ser tratado com atenção. Conforme aconteceu em boa parte do planeta, o sistema educacional local praticamente parou em razão da pandemia. O fato de as crianças e os jovens ficarem basicamente privados de ensino durante um período tão elevado, ainda que justificável à luz das necessidades sanitárias, viola o seu direito básico à educação, priva-os das merendas escolares, parte essencial da alimentação de muitos infantes, e mina o capital humano argentino para o futuro.

Estima-se que em torno de 40% dos estudantes de baixa renda abandonou as escolas de forma definitiva ou duradoura, o que prejudica sobremaneira o seu desenvolvimento intelectual – seu afastamento da educação formal possui consequências negativas para a sua futura inserção no mercado de trabalho. Igualmente, a crise da fome afeta negativamente o crescimento desses infantes, impedindo-nos de crescer de forma sadia ante a falta de uma nutrição adequada – o que constitui uma violação dos direitos básicos inseridos na Convenção dos Direitos da Criança - e obrigando-nos a trabalhar para prover sustento familiar.

Na esfera do investimento público, as taxas básicas de juros relativamente altas (empregadas como mecanismo anti-inflacionário) e o destino de parte do orçamento público para o rolamento da dívida externa limitam a capacidade do Estado argentino de financiar investimentos em setores produtivos, diminuindo sua capacidade de crescimento no longo prazo e perpetuando o ciclo econômico negativo. Quem é mais afetado por essa conjuntura macroeconômica, obviamente, é a população local.

Assim, ainda que a agenda eleitoral do atual presidente Alberto Fernández tenha proposto a manutenção do regime de seguridade social argentino, a concretização desta agenda se vê prejudicada sobretudo pela insegurança alimentar a que está submetido este território. Os desafios para a superação do flagelo da fome são imensos e envolvem uma miríade de obstáculos a serem superados, mas o seu cumprimento é absolutamente imperioso. Muitos dos movimentos sociais locais, em conjunto com parte da população, demandam mais oportunidades de emprego, já que fatia considerável dos indivíduos em idade para trabalhar se encontra desempregada, e é de conhecimento coletivo que empregos mais bem remunerados promovem melhores condições de vida e uma melhora da economia local. Além disso, acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável constituem o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 2 e estão, portanto, no centro da agenda global para a próxima década, não podendo passar desapercebido seu não-cumprimento no Cone Sul.


17 de outubro de 2021

Curadoria do Fórum Social Mundial da Saúde e Seguridade Social


MATERIAL UTILIZADO

https://www.clarin.com/economia/fmi-evita-hablar-inflacion-2022-argentina-acuerdo_0_pMKWdgzdW.html

https://www.clarin.com/sociedad/dolor-margarita-barrientos-cerrar-comedores-falta alimentos-sufriendo-_0_Ezu_Yt7un.html

https://brasil.elpais.com/internacional/2021-08-03/o-complexo-paradoxo-economico-argentino-o-unico-pais-americano-mais-pobre-do-que-um-seculo-atras.html

https://brasil.elpais.com/economia/2021-10-01/crise-economica-nao-da-tregua-na-argentina-4-em-cada-10-pessoas-sao-pobres.html

https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/05/agravada-pela-pandemia-pobreza-na-argentina-afeta-quase-6-de-cada-10-criancas.shtml

https://www.poder360.com.br/coronavirus/covid-argentina-ultrapassa-colombia-em-ranking-de-paises-com-mais-mortes-por-milhao/

https://www.paho.org/es/noticias/4-10-2021-opsoms-unicef-fao-apoyan-inminente-sancion-ley-etiquetado-frontal-alimentos



©,JUAN MABROMATA (AFP) | EL PAÍS.

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