O CASO MOÏSE KABAGAMBE: XENOFOBIA E RACISMO NO BRASIL
O mito de um país acolhedor, a realidade de um país violento
O brutal assassinato de Moïse Kabagambe, espancado até a morte no quiosque onde trabalhava na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, reflete o tratamento cruel e degradante que é dispensado a negros e imigrantes advindos do continente africano no país, além de desmistificar a concepção de um Brasil desprovido de violência étnico-racial.
Natural da República Democrática do Congo, Moïse veio para o Brasil em 2014, como refugiado, fugindo de conflitos em sua pátria de origem. Labutando na cidade do Rio de Janeiro, Moïse teria sido morto ao cobrar diárias de pagamento atrasadas do referido por parte dos proprietários do referido quiosque. Contudo, as investigações apontam, até o momento, que a cobrança da dívida não fora o real motivo para o espancamento: os agressores teriam assim agido em razão da condição de Moïse, refugiado, negro e africano, vítima prototípica da violência sistêmica e do racismo estrutural que imperam no Brasil.
O caso reflete a herança legada pelos séculos de escravidão no país. O regime que prevalecia em relação aos cativos vindos à força da África, sob o regime servil, traveste-se, hoje em dia, de novas dinâmicas, pois a coerção, a violência e a desídia face aos direitos essenciais dos obreiros negros continuam a imperar na atualidade, ainda que com diferentes roupagens. Não foi ao acaso que a violência, tão brutal, recaiu sobre um negro africano e fora, aparentemente, levada a cabo por parte de pessoas ligadas aos seus empregadores.
Afinal, a situação de exploração se agrava em relação aos refugiados que ingressam no Brasil, vez que estes se encontram em situação social ainda mais vulnerável que os trabalhadores locais, sendo, portanto, sujeitos a uma violência ainda mais intensa e corriqueira. As condições trabalho são ainda mais deletérias para os deslocados forçados, como era o caso de Moïse.
Igualmente, o assassinato implode a noção de que aqui existe uma “democracia racial”, no sentido de que o Brasil é um país onde inexistem tensões sectárias relacionadas à cor da pele. As estatísticas são cristalinas ao apontar negros têm muito mais chances de morrerem assassinados no país do que brancos, conforme aponta o Atlas da Violência de 2021, publicado pelo IPEA.
Negros também compõem a vasta maioria da população pauperizada do Brasil, o que indica a existência de uma inaceitável desigualdade social calcada na cor da pele em vigor no país. A conotação xenofóbica do atentado, por fim, reforça a tese de que a construção do Brasil como um país acolhedor a estrangeiros não passa de um mito que encobre uma realidade muito mais sombria para estes grupos populacionais.
Cumpre, assim, reforçar-se prontamente o combate à intolerância, em quaisquer que sejam suas formas de manifestação. Há, pois, instrumentos jurídico-normativos para tanto, como a Convenção Interamericana Contra Toda Forma e Discriminação e Intolerância, aprovada em 2021 no país com status de Emenda à Constituição Federal, que prescreve medidas a serem tomadas pelo Estado brasileiro no sentido de suprimir manifestações de racismo e xenofobia.
Nada obstante, a existência de tais marcos legais é apenas parte da solução do problema, assim como o é a punição exemplar dos perpetradores do ato hediondo. Cumpre superar as barreiras históricas à efetiva conquista da igualdade racial, o que é feito, por exemplo, através das políticas de ação afirmativa. O reconhecimento oficial de que há uma situação generalizada de racismo institucional e sistêmico no país, ao invés da associação do assassinato à “vagabundagem de Moïse” (como fez o presidente da Fundação Palmares de forma absolutamente repugnante) seria importante passo na prevenção de casos como o em comento.
MATERIAL UTILIZADO
https://www.geledes.org.br/a-carne-mais-barata-do-mercado-continua-sendo-a-carne-negra/

Direitos autorais: "Protesto pela morte de Moïse Kabagambe, no Rio de Janeiro" - Andre Coelho/EFE