Havana no centro dos debates na América Latina
As discussões que se debruçam sobre o quadro político cubano certamente estão entre as mais controvertidas da América Latina. Desde que Fidel Castro proclamou o caráter socialista da Revolução Cubana em abril de 1961, dois anos após a queda do ditador Fulgêncio Batista (1959) e na esteira da malsucedida tentativa de invasão da Baía dos Porcos, levada a cabo por exilados cubanos apoiados pela CIA, a ilha caribenha esteve no centro dos debates político-ideológicos no continente.
Com efeito, dois polos distintos costumam se opor no seio destas disputas: de um lado se situam os defensores do regime, que o são tanto em virtude de sua identificação político-ideológica com o marxismo-leninismo quanto em razão dos avanços em matéria de seguridade conduzidos pelo Estado cubano; do outro, os detratores do castrismo acusam a Revolução e o regime, que viria a ser após ela instituído, de possuírem caráter antidemocrático, criticando o sistema unipartidário e alegadamente repressivo ao dissenso vigente e que relega ao Partido Comunista local o monopólio das decisões políticas.
Na atualidade, Cuba se vê novamente frente a tal dicotomia. Ao passo que o país demonstrou até certo ponto forte resiliência no combate à pandemia da COVID-19 (ao menos durante as primeiras ondas da doença) e ainda desenvolveu uma vacina própria contra o vírus – recebendo elogios na comunidade internacional em razão de tal desenlace científico –, uma série de protestos irrompeu na capital cubana nos últimos meses, distribuição ineficiente dos imunizantes aos habitantes da ilha, o desabastecimento de alimentos e remédios nas principais cidades do país e a falta de liberdade de expressão nos meios de informação cubanos. A dura repressão, levada a cabo pelo governo cubano contra os manifestantes, foi alvo de profundas críticas por parte de organismos internacionais.
Do pioneirismo na vacinação à repressão aos protestos da sociedade civil
O sistema de saúde cubano mostrou uma importante capacidade para lidar com a pandemia de COVID-19, sobretudo no primeiro ano do cenário pandêmico. A sua boa estruturação e a realização de importantes ações na área permitiram que as taxas de infecção permanecessem abaixo da média continental ao longo do ano de 2020. O país ainda conseguiu desenvolver vacinas próprias contra a COVID, como a Abdala e a Soberana, atualmente já aplicadas em crianças e distribuídas para diversos países (dentre eles Venezuela e Vietnã) utilizando um modelo que, segundo informa o governo cubano, envolve transferência de tecnologia, nos moldes de uma cooperação de tipo Sul-Sul. No âmbito da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), Cuba se apresenta como um ator importante na defesa de uma saúde universal na América Latina, sendo considerada uma voz ativa quando se aborda a necessidade de se estruturarem sistemas de seguridade social resilientes na região.
O cenário, contudo, ainda é de enormes desafios para o país caribenho, tendo a situação se agravado nos primeiros meses de 2021, tanto em virtude de questões relacionadas à política local quanto no que diz respeito ao acirramento da pandemia na ilha – cenário que, em verdade, se desenhou em praticamente todo o subcontinente, mas que tem em Havana nuances próprias.
Após 43 anos de vigência de sua Constituição anterior, que estava em vigor desde 1976, os cubanos aprovaram um novo texto constitucional em 2019, que sublinhou o caráter “irrevogável” do socialismo como sistema social na ilha e manteve o sistema unipartidário, considerando assim o Partido Comunista como sendo o único legalmente aceito no território. O regime de seguridade social manteve suas bases e a normativa constitucional passou a reconhecer e legitimar a propriedade privada, o papel do mercado e a regulação estatal sobre os investimentos da ilha, o que poderia impulsionar o desenvolvimento cubano.
Contudo, a instituição de uma nova ordem jurídica na ilha se deu num contexto de continuidade do embargo a Cuba, executado há décadas pelos EUA, onde a comercialização de bens entre os Estados Unidos e o território cubano é barrada ou amplamente limitada, e de restrições ao comércio internacional e à circulação de bens, ocasionadas pela pandemia. Como resultado, situações de desabastecimento, que já eram corriqueiras, tornaram-se mais frequentes em Havana e em outros centros urbanos importantes conforme medidas de isolamento social mais rígidas foram sendo implementadas ante o agravamento do quadro sanitário.
Em julho de 2021, uma parcela da população cubana se mobilizou, em diversas manifestações, protestando contra apagões recorrentes em várias regiões do país e exigindo que o governo vacinasse os cidadãos de forma mais célere e equitativa. Estima-se que a magnitude de tais protestos, provavelmente os maiores desde os anos 1990, esteja relacionada principalmente ao uso das redes sociais e da difusão da internet na ilha, o que possibilitou a mobilização dos manifestantes. A resposta do governo do presidente Miguel Díaz-Canel envolveu a associação dos manifestantes com “contrarrevolucionários”, o corte da rede de internet e da linha telefônica, que ficaram funcionando por apenas alguns períodos ao longo do dia, a culpabilização dos estadunidenses pela situação social crítica e, sobretudo, a repressão aos protestantes. Como resultado, centenas de cubanos foram presos e muitos foram julgados por tribunais municipais. Nos meses que se seguiram, passeatas e reuniões continuaram a acontecer, assim como se ampliou a escala da repressão oficial. Um relatório da Human Rights Watch, divulgado em outubro de 2021, afirma que mais de uma centena de manifestantes foi vítima de abusos cometidos pelo governo, chamado de ditadura na publicação.
Como forma de tentar legalizar e oficializar um protesto de grande magnitude agendado para o dia 20 de novembro, no qual pretender-se-ia reclamar a libertação dos indivíduos presos nos movimentos anteriores e pedir o fim da violência e o respeito aos direitos dos cubanos, uma organização solicitou autorização para a realização da manifestação ao Estado, mas o pleito foi negado. A justificativa apresentada pelo Poder Executivo é a de que não existem razões legitimas para a realização dos protestos, chamados pelo Estado de “maneira de desestabilizar e atacar o regime socialista da ilha”, prática que, de acordo com o artigo 4 da nova Constituição, é proibida e sujeita às mais severas sanções.
Os caminhos para Cuba
A magnitude dos protestos da sociedade civil contra o regime e as precárias condições de vida dos cubanos indicam que é crescente o questionamento da sociedade ao modelo político atualmente em vigor na ilha. Sequer o resiliente e elogiado sistema de saúde cubano resistiu à onda de destruição deixada pela pandemia, malgrado os esforços do governo e da sociedade, com notável menção para a atuação dos profissionais da saúde de Cuba em sua luta contra o vírus.
O que tal contexto sinaliza é que mesmo um modelo de seguridade social ampla é vulnerável e pode vir a colapsar a depender da situação sanitária, especialmente se localizado na América Latina. Além disso, a defesa das liberdades fundamentais é essencial para um processo democrático e para o desenvolvimento humano. A atual Carta Magna de Cuba, em seu artigo 56, permite a associação e a realização de manifestações pacíficas em todo o território, mas esse direito foi negado pelo poder Executivo.
A verdadeira seguridade depende não só da provisão dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais pelo Estado, mas, igualmente, a possibilidade de a sociedade civil vir a reclamá-los de forma livre e desimpedida.
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