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Cortador de cana-de-açúcar e sua luta por direitos

Atualizado: 8 de jun.


Em 16 de janeiro comemorou-se o dia do cortador de cana-de-açúcar, que pode ser considerada a primeira riqueza agrícola e industrial do Brasil, cultura predominante entre metade do século XVI e metade do século XVIII e base da economia colonial. Direcionada para o comércio e o mercado exterior, era sustentada por mão de obra escrava e a organização social daquele período influenciou o país e suas marcas permanecem nítidas. Casa grande, senzala, pelourinho, feitor-mor e feitor são figuras com as quais ainda nos deparamos, ainda que numa versão moderna e a estrutura agrária baseada em grandes propriedades e na monocultura estão na raiz da distribuição desigual de terras. Os senhores de engenho hoje são o agronegócio, a mão de obra escravizada foi substituída pela mão de obra (nem sempre) livre, submetida ao mesmo trabalho árduo, executado em péssimas condições e mal remunerado.

Numa profissão que existe no país há mais de cinco séculos, o trabalho pouco mudou: cada cortador responde por uma fileira de plantação, denominada rua, vão cortando a cana e formando pilhas que serão medidas por um fiscal, a partir do que será calculada sua remuneração. Em sua maioria, o cortador de cana é do sexo masculino, tem entre 19 e 40 anos de idade, pouca ou nenhuma escolaridade ou qualificação profissional. Executa um trabalho pesado, com risco de lesões por esforço repetitivo. Trabalha em condições de alimentação e saneamento precárias, exposto a fertilizantes e agrotóxicos, radiação solar, cortes provenientes de instrumentos de trabalho e picadas de animais como cobras e escorpiões.

Acrescente-se que a remuneração dos cortadores de cana por produção leva muitos trabalhadores ao limite das possibilidades de seus corpos, sendo comum o trabalho sem descanso como forma de garantir maiores ganhos. Nos últimos anos foram proferidas decisões judiciais, de diferentes instâncias, no sentido de que essa forma de remuneração é ilegal ou não afasta a consideração de elementos como hora extra.

Esses trabalhadores, atuantes desde a colonização, levaram séculos até verem o início do reconhecimento de seus direitos sociais básicos. Em 1971 foi implantado o programa denominado PRO-RURAL, com um esboço de previdência social rural, limitado a aposentadorias por idade, invalidez para trabalhadores maiores de 70 anos de idade, no valor de meio salário-mínimo, pensão equivalente a 70% da aposentadoria, auxílio-funeral para dependentes do beneficiário, serviço de saúde e serviço social. Apenas com o advento da Constituição de 1988 e o sistema de Seguridade Social, a proteção social no Brasil começou a ganhar musculatura e abranger os trabalhadores rurais.

Os trabalhadores ansiavam por direitos como registro em carteira, condições seguras de transporte e de trabalho, entre outras. Um salto de qualidade foi dado no mês de maio de 1984, numa região economicamente pujante do estado de São Paulo, denominada “Califórnia brasileira”, em que se destacava a cultura de cana-de-açúcar, com mão de obra arregimentada em diversas partes do Brasil, atraída por oferta de ganhos superiores aos que aufeririam em suas regiões, geralmente carentes de oportunidades de trabalho.

Como medida de seu interesse econômico, usineiros divulgaram mudanças na organização do trabalho que resultariam em queda de remuneração. O fato levou a insatisfação dos cortadores de cana ao limite e, na cidade de Guariba, estado de São Paulo, mulheres trabalhadoras, sem apoio ou organização sindical, iniciaram a primeira greve nesse setor. Iniciada em 14 de maio, a greve durou seis dias e foi seguida por uma onda de paralisações no interior do estado de São Paulo e sul de Minas Gerais, que se estenderam até setembro e trouxeram importantes vitórias para os trabalhadores.

O primeiro ato foi uma passeata, pacífica até o momento em que a repressão policial entrou em cena. Com o acirramento dos ânimos, ocorreu saque a um mercado e enfrentamento com a polícia, ao que se seguiu perseguição aos trabalhadores, que foram surrados dentro de suas casas, além de feridos a bala e um morto – um aposentado atingido por bala perdida. Ou seja, o conhecido quadro resultante do tratamento de questão social como questão de polícia, desde sempre presente no Brasil.

Para quem quiser conhecer melhor o denominado “Levante de Guariba”, o livro Açúcar Amargo, de Luiz Puntel, retrata a vida de uma família que participou dessa greve e no YouTube estão disponíveis vídeos sobre o fato.

Foi o maior movimento de trabalhadores rurais até então e resultou em avanços em termos de direitos trabalhistas: aumento da remuneração do corte por tonelada, transporte gratuito e seguro, registro em carteira de trabalho, descanso semanal remunerado, recebimento de férias e décimo-terceiro salário, pagamento do dia de trabalho em que a chuva o impedir, pagamento dos direitos no caso de rescisão do contrato de trabalho, garantia de pagamento do salário por 30 dias no caso de doença do trabalhador, equiparação da remuneração entre homens e mulheres, fornecimento do material de trabalho (botas, facões, podões, meias e luvas) e garantia de emprego por oito meses. Das dezenove reivindicações apresentadas, treze foram atendidas, encerrando a greve.

Este resumo pode levar à equivocada impressão de que a vida desses trabalhadores rurais mudou radicalmente. Embora sua luta tenha trazido avanços, foi um primeiro passo e o respeito aos direitos trabalhistas não está presente em todo o país. Há empresas que, preocupadas com o bem-estar de sua mão de obra, implantam programas e benefícios que extrapolam as exigências legais; há outras, em que os direitos conquistados não são totalmente respeitados e aquelas em que direitos básicos são ignorados. Prova disso é que plantações de cana-de-açúcar se destacam nos flagrantes de violação de leis trabalhistas e trabalho escravo, com a utilização de mecanismos como servidão por dívidas e trabalho forçado. Em ações junto ao setor canavieiro, entre 2003 e 2013, auditores fiscais do trabalho resgataram quase 11 mil trabalhadores em situação análoga à escravidão.

O Brasil vive um avanço de políticas neoliberais na cidade e no campo: a reforma trabalhista do governo de Michel Temer tem levado a certa pressão no sentido de rebaixamento salarial, além de demissões e a perniciosa terceirização já se apresenta. A reforma da Previdência do perverso governo Bolsonaro prejudica os trabalhadores rurais, pois aumenta o tempo de contribuição necessário para a aposentadoria e exige contribuição quando não há ganho. Ademais, verifica-se um processo de desmonte das estruturas de fiscalização do trabalho.

A situação dos cortadores de cana vem sendo transformada pela mecanização dessa etapa do processo. Em São Paulo cerca de 85% das usinas estão mecanizadas, fato propagado como modernização ligada a adesão a uma agenda sustentável, assinalando o paradoxo que caracteriza o setor canavieiro: o novo, consubstanciado no avanço tecnológico e o velho, representado por relações de trabalho hostis, péssimas condições de trabalho e de remuneração dos cerca de 1,5 milhões de trabalhadores que o sustenta, entre eles os cortadores de cana. Em diversos estados do Brasil a produção depende do corte manual. A mecanização reduz a necessidade de mão de obra humana, não a elimina, mas a coloca em locais mais difíceis, onde a máquina não entra, como aqueles com relevo.

O Brasil ocupa a posição de grande produtor e exportador mundial de cana e derivados, produção oriunda de 430 usinas e destilarias, que respondem pela maior produção mundial de açúcar e 45% da produção de etanol do mundo. O cortador de cana, base dessa grande cadeia industrial, ainda tem um longo caminho de lutas pela frente.


Material utilizado

O Levante de Guariba: 35 anos da greve que mudou a vida dos ‘bóias-frias’ no Brasil - Portal do Curso de Jornalismo (baraodemaua.br)

Levante de Guariba (Greve dos cortadores de cana em Guariba) – Nazismo, Holocausto e outros temas. (wordpress.com)

O Levante de Guariba: 35 anos da greve que mudou a vida dos ‘bóias-frias’ no Brasil - YouTube

Boias-frias e o Acordo de Guariba após a greve de 1984 - YouTube

Guariba, 1984: o ano que não quer acabar (reporterbrasil.org.br)

Exaustos, trabalhadores cortavam 22 toneladas de cana por dia para Raízen (reporterbrasil.org.br)

ConJur - Juiz obriga usina a abolir salário por produção no corte de cana

Turma reconhece horas extras a cortador de cana remunerado por produção (jusbrasil.com.br)

TST reconhece horas extras integrais a cortador de cana remunerado por produção (migalhas.com.br)



Copyright © JoelSilva/Folhapress


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