Controle social: desafios a sua efetivação
Uma das instâncias fundamentais do controle social no Sistema Único de Saúde (SUS) são as Conferências de Saúde que, em 2021, foram inviabilizadas pela pandemia de Covid-19. Embora a legislação possibilitasse o adiamento, mediante documento escrito em que a autoridade municipal se comprometesse a realizá-la até 31/12/21, a gestão municipal de São Paulo trabalhou com o prazo inicial – 31/08/21.
Instalou-se a discussão acerca de alternativas à Conferência e, apesar de o Conselho Municipal de Saúde ter poder deliberativo, prevaleceu a proposta da gestão municipal sobre utilização de uma plataforma digital denominada Participe+. Tal plataforma existe desde 2006, passou por aperfeiçoamentos, mas ainda estava longe de oferecer interface amigável e segurança. Aos olhos dos conselheiros e movimentos populares de saúde, tratava-se de uma alternativa que poderia comprometer o efetivo controle social, tendo em vista a qualidade dos equipamentos e do sinal de internet a que a maioria da população tem acesso. Como resposta, a gestão municipal afirmou que disponibilizaria os Telecentros, laboratórios de informática de escolas, computadores das Supervisões Técnicas de Saúde, bem como intérprete de libras e áudio para pessoas com deficiência visual. Nada disso se concretizou.
A prática confirmou as previsões, pois a plataforma não se mostrou amigável, gerando dificuldades até mesmo para o cadastro inicial de usuário. Por outro lado, a gestão municipal não se movimentou com a transparência necessária ao processo quanto à forma de deliberação popular. Em nenhum momento detalhou as etapas do processo e as peculiaridades da própria plataforma, como as denominações por ela utilizadas.
Propostas foram inseridas no período de 13 a 24/08/21 como fruto do esforço de conselheiros de saúde, movimentos populares de saúde e organizações da sociedade civil. Esperava-se que, após esse momento, os cidadãos pudessem votar nas propostas que considerassem prioritárias para o território de cada Subprefeitura.
Quando se esperava a opção de votar nas propostas avaliadas como prioritárias, aparecia a opção “debate”, que se presumiu tratar-se de momento de apresentar comentários. Todavia o “debate” já era o voto, que se limitou a cinco opções para cada pessoa cadastrada.
A conduta da gestão municipal e da própria plataforma geraram frustração em centenas de pessoas que se dedicaram a discutir diretrizes, metas, ações para a formulação da política de saúde do período 2022-2025 e, principalmente, violou os princípios da transparência e do controle social. Houve desencontro de informações, mesmo para o Conselho Municipal de Saúde, a quem caberia construir, deliberar e normatizar todo o processo. Ignorou-se o fato de que os Conselhos são espaços privilegiados de apresentação de necessidades e do exercício do controle social acerca das políticas de saúde.
A opção da Prefeitura do Município de São Paulo pela plataforma Participe+ resultou em individualização da participação, numa perspectiva liberal que não atribui ao ato sua conotação de presença na construção e fiscalização das políticas públicas. A participação efetivamente voltada para a decisão foi substituída por outra que, ainda que tenha significado alguma influência no processo decisório, teve mais um caráter simbólico. Ao arrepio da legislação do SUS, que estabelece claramente mecanismos próprios de participação, com regularidade e permanência, a gestão paulistana seguiu a lógica técnico-burocrática do poder municipal.
Tal experiência leva a reflexões acerca da efetividade do controle social na área da saúde no atual momento político. A participação da comunidade, posta como diretriz ou até mesmo princípio, é tema presente já na Reforma Sanitária da década de 70 do século XX. Não se trata de uma incidência política individual, mas sim o reconhecimento do sujeito coletivo, participante da construção e efetivação do direito à saúde.
O controle social faz parte da consolidação do processo democrático, que não é linear. O Conselho Municipal de Saúde é um dos espaços de disputa política; nele convivem diferentes convicções. Por um lado, os que trabalham a partir da necessidade de aprofundamento democrático, da presença dos cidadãos na formulação e controle das políticas públicas de saúde; por outro, os que pugnam pela redução do papel do Estado e transferência de responsabilidades para a sociedade civil. O município de São Paulo é emblemático deste movimento, com a crescente presença das organizações sociais na gerência de serviços de saúde.
Cabe ao Conselho Municipal de Saúde de São Paulo assumir o protagonismo que a legislação lhe atribui e que dele esperam os movimentos populares e as organizações da sociedade civil voltadas à defesa do direito social à saúde. Não é aceitável que essa instância tão importante se submeta a engodos da gestão pública como a perpetrada no processo de construção de diretrizes, metas e ações para o Plano Municipal de Saúde para o quadriênio 2022-2025.
O Estado Democrático de Direito de que trata o art. 1º da Constituição Federal de 1988 só se concretiza com soberania e cidadania como valores intrínsecos da democracia e, portanto, de uma efetiva participação popular, e não participação tutelada.