COLÔMBIA: O GOVERNO DAS MÃOS CALEJADAS, DOS NINGUÉNS E DAS NINGUÉNS
Em 19 de junho de 2022 a Colômbia viveu o mais importante momento histórico
de sua vida republicana. São 116 anos de domínio da oligarquia, com revezamento
entre liberais e conservadores, fraudes eleitorais e assassinatos de lideranças
populares. Gustavo Petro como novo presidente representa a vitória do campo
progressista daquele país e a presença de Francia Marques - mulher negra,
quilombola, militante antirracista, pelos direitos humanos e meio ambiente - completa
a síntese das lutas a serem travadas no sentido de uma Colômbia realmente
democrática, com políticas direcionadas para o bem-estar da maioria.
Os que pretendem carimbar a posição política de Gustavo Petro oscilam entre
esquerda e centro-esquerda para quem foi prefeito de Bogotá, parlamentar e, sim,
guerrilheiro. Na juventude pertenceu ao Movimento 19 de Abril (M-19), que recebeu
esse nome em referência a uma eleição escandalosamente fraudada em 1970. Foi
uma organização de esquerda, mas de cunho nacionalista, que tinha como objetivo
fundamental o estabelecimento de uma real democracia na Colômbia. A vitória da
esquerda no país simboliza uma conquista memorosa para o avanço do projeto
democrático nos territórios latinos, mas também grandes responsabilidades no
processo de criação de medidas que visem solucionar os inúmeros problemas
socioeconômicos e políticos enfrentados pela nação.
O desenrolar do período eleitoral na Colômbia foi marcado por especulações
relacionadas à ocorrência de fraudes, tendo em vista a prisão de líderes políticos
integrantes de organizações sociais que, em algum momento, haviam participado de
atos contra o governo de Iván Duque, bem como pela propagação de informações
falsas ou tendenciosas acerca dos candidatos pelos meios de comunicação. Como
uma tentativa de garantir a transparência dos regimes de votação, o Observatório da
Democracia do Parlamento do MERCOSUL (ODPM) participou do monitoramento das
atividades. Analisando o panorama político apresentado pelos países da América
Latina e do Caribe, como o crescimento exponencial das ações e discursos ditatoriais,
além das constantes dúvidas acerca da legitimidade do sistema eleitoral,
desconfianças essas colocadas em foco por presidentes que não confiam nas
instituições do Estado, a realização desse exercício de fiscalização apresenta-se
como uma providência necessária.
No Brasil, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) convidou o ODPM e outras
organizações internacionais para que enviem missões de observação das eleições
brasileiras, marcadas para outubro de 2022. O país tem vivido eleições tranquilas,
com utilização de urnas eletrônicas há quase trinta anos, mas a observação
internacional torna-se importante neste ano devido às constantes investidas do
presidente Jair Bolsonaro contra a democracia. Esses ataques alcançaram um nível
tal que o número de autoridades nacionais e internacionais que reconhecem o risco
de tentativa de golpe por parte do atual presidente cresceu.
Na América Latina, além das violações aos direitos sociais, a transgressão aos
direitos civis e políticos aparece como uma ameaça constante, estando sempre à
espreita nos territórios permeados por tradições ditatoriais. Um exemplo claro e atual
é a situação da Nicarágua e a derrocada incessante de suas instituições democráticas. As eleições nicaraguenses, ocorridas no ano passado, levaram Daniel
Ortega a mais um mandato e foram palco para ações antidemocráticas, com a prisão
de candidatos, proibição de cobertura do processo pela mídia e o impedimento da
presença de observadores, operação proposta pela Organização dos Estados
Americanos (OEA). As façanhas realizadas por Ortega demonstram, de maneira
perceptível, a importância dos processos de fiscalização para que se garanta eleições
livres e democráticas.
Colômbia e seus antecedentes históricos
Internacionalmente reconhecida como a democracia mais estável da região em
razão de seu passado de curto período de regime ditatorial ou militar – apenas entre
1953 e 1957, a Colômbia conta com uma dinâmica política de alternância entre elites
tradicionais e formação de guerrilhas que lutavam contra a desigualdade, violência
estatal e questão fundiária, levando ao conflito armado mais duradouro do continente
e, nesse processo, viveu a consolidação do baronato do narcotráfico. Intensificaram-
se a concentração de terras e a violência, exércitos paramilitares se fortaleceram e o
país viu sua democracia se instabilizar e instalar-se um Estado autoritário e corrupto,
marcado pela aliança entre as elites políticas e o narcotráfico. Essa foi a realidade
vivida entre a década de 70 e início dos anos 90.
A década de 90 marcou a implantação de políticas neoliberais ao gosto do
Fundo Monetário Internacional – FMI, que lograram piorar as condições já
introduzidas, com a desestabilização da indústria nacional e, embora tenha se
verificado um aumento na exportação de produtos primários, agrícolas e de
mineração, os respectivos setores estavam predominantemente nas mãos de
empresas estrangeiras. Desse processo resultou uma maior concentração de terras e
o aumento de ações paramilitares nas áreas rurais, além de exportações ilegítimas,
marcadamente frutos da articulação entre latifundiários, grupos armados ilegais e
setores da classe política.
O cardápio de atuação neoliberal é conhecido: privatizações, precarização das
relações de trabalho nos setores público e privado, dificuldade crescente de acesso
da população ao ensino superior, sistema de aposentadorias e saúde nas mãos de
entidades privadas e o acesso de saúde estreitamente ligado à existência de um
contrato de trabalho, condição inexistente para metade da população ocupada, que se
encontra na informalidade.
OBSERVACTIVA e o mapeamento de conflitos
A atual conjuntura política da Colômbia, com profundas marcas de seu passado
político, é atravessada por inúmeras situações conflituosas, que dão origem a
diversas violações no campo da garantia e efetivação dos direitos. A captação, análise
e o mapeamento dos conflitos, já existentes ou em potencial, que envolvam a
sociedade civil, o Estado e outras entidades, inclusive as privadas, é o foco do
Observatório de Conflitualidades em Políticas Sociais e Ambientais na América Latina
e no Caribe (OBSERVACTIVA), em atividade desde o segundo semestre de 2021. A
identificação dessas questões e de suas origens é importante, principalmente quando
se compreende que muitos desses processos se desenrolam ao longo de anos. Nos
últimos meses a OBSERVACTIVA tem sido capaz de reconhecer algumas das
circunstâncias conflituosas existentes na Colômbia, em especial as que são
produzidas pelo contexto de violência.
O crescimento das organizações paramilitares, em conjunto com a
desassistência do Estado, tem colocado muitos indivíduos em circunstâncias de vulnerabilidade, sendo considerado um grande problema, com expansão nacional.
Como exemplo dessa situação, temos o intenso deslocamento de grupos indígenas
pela Colômbia, como é o caso da comunidade Embera. Além de aumentar os índices
de violência, a presença paramilitar nos territórios impede a chegada de alimentos nas
comunidades, principalmente rurais, criando um novo panorama de insegurança
alimentar e desnutrição no país. Essas condições levam as comunidades para as
zonas urbanas e a ausência de políticas públicas que as contemplem acirram ainda
mais sua vulnerabilização.
A assinatura do Acordo de Paz, em setembro de 2016, criou a falsa esperança
de que a democracia no país seria protegida, por meio do fim das guerras internas e
da preservação das vidas colombianas. Muitas das propostas presentes no pacto,
firmado entre o ex-presidente Juan Manuel Santos e as Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (Farc-EP), permaneceram somente
no papel. Vale salientar que atualmente a Colômbia é considerada um dos territórios
mais perigosos para a realização de ações de defesa da paz e dos direitos humanos,
situação que pode ser confirmada quando se examina o número de pessoas ligadas a
movimentos sociais que foram assassinados nos últimos anos.
Além das ações do narcotráfico e dos paramilitares, a violência policial tem sido
uma temática de grande preocupação. Ainda em 2020, a força policial foi acusada de
cometer inúmeros massacres e abusos durante a realização de manifestações
pacíficas que terminaram com o assassinato de diversos indivíduos. Assim sendo, é
possível perceber que a violência no país tem diversas origens, mas possui uma raiz
pautada nas vontades das elites tradicionais e de suas práticas de repressão e
autoritarismo.
Um segundo conflito amplamente identificado tem relação com o aumento da
insegurança alimentar, caracterizada como uma condição adicional ao processo de
precarização da qualidade de vida no país. A pandemia de Covid-19 piorou as
condições de vida da população colombiana, sendo que atualmente cerca de 42%
encontra-se abaixo da linha de pobreza. Podemos somar essa situação com a
inexistência de políticas de distribuição da riqueza, da renda ou da terra, de combate à
pobreza e à fome.
Conclusão
Com a vitória, Petro e Francia assumem o enorme compromisso de materializar
a força e os sonhos de um povo que, num país em que o voto é facultativo, se
deslocou para votar usando barcos, caminhando quilômetros a pé e aguardando em
grandes filas, numa demonstração da dimensão do anseio por democracia, paz e uma
vida melhor para todos. O estabelecimento de uma linha direta entre o novo chefe do
Executivo e os cidadãos, incluindo os que não votaram em Petro, é fundamental como
base para alavancar o novo ciclo a ser construído no país.
A conquista da Colômbia simboliza um sopro de esperança para muitos países
latinos e caribenhos que têm vivido o aumento da desigualdade social e da fome sob
a liderança da direita e extrema-direita com suas políticas neoliberais a serviço do
capital financeiro.
Material consultado
Colômbia: políticas neoliberais na raiz das causas da explosão social (diplomatique.org.br)
https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/eleicoes-na-colombia-22/74791/colombia-vota-
entenda-os-riscos-de-fraude-nas-eleicoes-deste-domingo
https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/eleicoes-na-colombia-22/75082/colombia-com-
petro-a-frente-das-pesquisas-midia-ataca-militancia-jovem-com-fake-news
