Pandemia e migrações: o antes e o depois
A pandemia da COVID-19 pode ser entendida como um evento catalisador de
transformações em praticamente todos os campos da vida humana. Os
deslocamentos espaciais dos habitantes se inserem nessa lógica, pois as
consequências econômicas da crise sanitária afetaram, direta e indiretamente, as
populações em pleno processo de locomoção e os grupos de migrantes que já
estavam estabelecidos no estrangeiro, sem que tenha havido, contudo, uma
extensão equivalente da proteção social, internacional ou local, para os respectivos.
O cenário pré-pandêmico indicava um aumento histórico e contínuo no
número de pessoas situadas fora do seu local de nascimento. Entre 2010 e 2019, o
número de migrantes internacionais saltou de 220 milhões para 271 milhões –
aumento que se deu tanto em números absolutos quanto em números proporcionais
(de 3.2% da população mundial para 3.5%), segundo dados do Departamento das
Nações Unidas para Assuntos Econômicos e Sociais. Independentemente desses
migrantes serem frutos de fluxos forçados (no caso dos refugiados sírios) ou não, é
fato de que a segunda década do século XXI foi particularmente favorável aos
deslocamentos populacionais pelo globo.
A atual pandemia provocou drásticas reduções nesses fluxos. Em primeiro
lugar, a instituição de controles de fronteira foi uma das medidas mais difundidas,
tomadas com o objetivo de conter a propagação do agente infeccioso. Diante de tal
cenário, mesmo em áreas de livre-circulação de pessoas, como a compreendida
pelo Acordo Schengen, na Europa, a circulação internacional de indivíduos foi
virtualmente anulada durante o ápice das restrições. Para os migrantes, isso
significou o fechamento de portas de entrada em possíveis locais de destino e, no
caso daqueles que se encontravam em situação de deslocamento forçado, a
perpetuação de condições de vida degradantes em seus locais de situação.
Em verdade, o cenário econômico nas regiões que são pontos comuns de
chegada tornou estas localidades menos atraentes aos migrantes. No continente
Europeu, trabalhadores vinculados ao terceiro setor, como hotelaria e restaurantes,
sofreram cortes bruscos em sua renda com a paralisia das atividades econômicas.
É importante relatar que são justamente nestes setores que se encontram os postos
geralmente ocupados pela maioria dos migrantes internacionais – muitos deles, inclusive, empregaram fluxos de retorno aos seus países de origem nos estágios
iniciais da pandemia, particularmente para países que ingressaram na União
Europeia a partir de 2004 e que “exportavam” obreiros para a Europa Ocidental
(notou-se um fluxo razoável de poloneses saindo do Reino Unido e da Alemanha
em direção à Polônia, por exemplo).
Para estes trabalhadores já situados no estrangeiro, os efeitos econômicos
da pandemia da COVID-19 são particularmente alarmantes. Como destacado, há
uma evidente perspectiva de perda de renda pelas restrições na prestação do
trabalho sem que haja uma cobertura correspondente em termos de seguridade
social -na forma de seguro-desemprego ou de prestações periódicas de renda - a
qual é, em muitos casos, reservada aos cidadãos do país. Mesmo em hipóteses de
cobertura securitária estendida aos migrantes, como é previsto no caput do art. 5o
da Constituição brasileira, estes possuem condições que os deixam vulneráveis
para acessar os benefícios, seja por entraves linguísticos ou burocráticos.
Da mesma forma, os países de origem desses migrantes também sofrem
com a situação econômica de seus nacionais, já que as remessas internacionais
dos migrantes (a parte de sua renda que é destinada ao país de origem) são, em
muitos casos, componente essencial da balança de pagamentos de alguns países
(no Haiti, tal valor chega a compor quase um quarto do seu produto interno bruto) e,
portanto, fator vital para a sua atividade econômica. A sua capacidade de importar
bens, por exemplo, pode vir a depender desses aportes feitos em moeda
estrangeira por parte de seus nacionais.
A migração internacional no Brasil
O quadro pandêmico, aliado à abordagem migratória promovida pelo atual
governo brasileiro, implica a necessidade de reflexões acerca das migrações
internacionais no Brasil.
A história do país foi marcada pela alternância entre ocasiões de repressão à
migração e momentos de incentivo aos deslocamentos internacionais. Se em
meados do século XIX o governo imperial criou programas de incentivo a imigração,
com o objetivo de atrair mão-de-obra europeia para a cafeicultura e de promover o
branqueamento racial no país, ao longo do século seguinte medidas restritivas
foram instituídas, tal qual operado pela legislação nacionalista imposta em 1934 por
Getúlio Vargas (Decreto no 24.215/34) ou mesmo pela promulgação do Estatuto do
Estrangeiro (Lei no 6.815/80) durante o regime militar, que percebia no imigrante
uma potencial ameaça à segurança nacional.
Somente após a redemocratização, quando o Estado brasileiro passou a
aderir aos regimes internacionais de Direitos Humanos, com a ratificação da
Convenção de São José da Costa Rica e dos Pactos de Direitos Humanos das
Nações Unidas, é que as políticas migratórias brasileiras foram se adaptando aos
imperativos de respeito às garantias fundamentais do migrante, de sua inserção no
ordenamento jurídico como sujeito de direitos e da necessidade de uma promoção
da migração segura e ordenada, de forma que a mesma passe a ser entendida
como potencialmente benéfica à sociedade.
Ao passo que na atualidade os países de maior desenvolvimento relativo se
mostraram mais rígidos em suas legislações migratórias (como é o caso inconteste
dos EUA após o ataque terrorista em 11 de setembro), o Brasil tem paulatinamente
ampliado os direitos dos migrantes. O território brasileiro abriga indivíduos
provenientes de diversas partes do mundo, que acabam se deslocando de seus
países originários por inúmeros motivos, sejam eles econômicos, sociais ou
ambientais. Na atualidade, há cerca de 800.000 estrangeiros vivendo em solo
nacional, segundo dados do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) e do
Ministério da Justiça.
A lei brasileira de migrações (Lei no 13.445/17) se insere neste espírito
protetivo e acolhedor, tendo como objetivo facilitar a realização de diversos
procedimentos administrativos para os migrantes, em substituição à arcaica
legislação pretérita. Assim, estimula-se a regulamentação documental desses
indivíduos, com a intenção de promover-se a inclusão social e produtiva do imigrante,
através da criação e do aperfeiçoamento de políticas públicas. Ademais, a legislação
em comento promove explicitamente a proteção de brasileiros no exterior como
sendo um vetor da política migratória doméstica.
As ações para migrantes brasileiros no exterior e migrantes estrangeiros no Brasil
Como se destacou, a atual conjuntura sanitária mundial dificultou
demasiadamente a condição dos migrantes situados em todo o planeta, inclusive a
dos brasileiros que habitam no estrangeiro. A situação de muitos foi tão
desesperadora, tendo perdido seus empregos ou estando presos no exterior com o
fechamento das fronteiras, que o Ministério das Relações Exteriores promoveu uma
maciça operação de repatriamento dos nacionais brasileiros, trazendo-os de volta ao
país logo que a crise sanitária se agravou, evitando assim que eles ficassem sem
assistência nos países de destino.
Em relação aos migrantes estrangeiros situados no Brasil, é sabido que a
vasta maioria destes indivíduos trabalham em empregos informais nas grandes
cidades do Sul e Sudeste brasileiro, mas com o aumento da crise econômica, foi
corriqueira a situação de desemprego e perda de fonte de renda fixa. Ainda que a Lei
no 13.445/17 garanta que o migrante possui o direito de acesso a serviços,
programas e benefícios sociais, muitos estrangeiros não conseguiram lograr acesso
ao auxílio emergencial pago pelo governo brasileiro. Os grupos se queixaram de
problemas que ocorreram desde o início do cadastro até o momento de saque da
assistência.
Um exemplo razoavelmente bem-sucedido de atuação do Estado brasileiro em
relação ao fenômeno migratório fora o da Operação Acolhida, levada a cabo em
Roraima para acolher os venezuelanos, que deixaram o país caribenho devido a
intensa crise política e socioeconômica, e em seguida interioriza-los. O fluxo de
pessoas chegando da Venezuela tem aumentado recentemente, acabando por
também se evidenciar como um reflexo das nefastas consequências da pandemia no
país, que tem sido duramente afetado pela disseminação da doença e pela precária
infraestrutura hospitalar e farmacêutica existente.
Mesmo que a situação no Brasil não seja particularmente atrativa para os
migrantes, a volta destes ao seu país de origem não é uma opção já que a situação
em muitas destas localidades não só não melhorou desde a partida dos mesmos,
como chegou a piorar, visto que o Haiti, por exemplo, foi atingido por mais uma
catástrofe ambiental e se encontra em franco processo de instabilidade política, e a
Venezuela, que vive momentos turbulentos desde a ascensão de Nicolás Maduro ao
poder no ano de 2012. Convém, assim, proporcionar aos migrantes aqui situados
condições dignas de existência.
Considerações Finais
Tão logo assumiu a Presidência da República, Jair Bolsonaro indicou que o
Brasil se dissociaria do Pacto Global para Migração Segura, Ordenada e Regular,
lançado pela Organização Internacional de Migrações em 2017, alegando que o
país é “soberano para decidir se aceita ou não migrantes”. Ademais, o país ainda
não aderiu à Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os
Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias, adotada pela
Assembleia Geral das Nações Unidas em 1990.
Estes dois fatos indicam que o país ainda precisa caminhar bastante na trilha
da proteção integral aos migrantes. O quadro pandêmico apenas reforçou a evidente vulnerabilidade à que está submetida a população migrante, e o compromisso com os direitos fundamentais daqueles em situação de deslocamento é necessidade urgente para o atingimento de um regime de seguridade social ampla.
Material utilizado
https://brasil.elpais.com/internacional/2021-08-10/o-exodo-silencioso-dos-haitianos-
na-america-latina.html
https://www.brasildefato.com.br/2020/06/28/sem-politicas-publicas-efetivas-
imigrantes-sobrevivem-da-solidariedade
https://www.politize.com.br/nova-lei-de-migracao/
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm
haps://www.unhcr.org/stadsdcs/unhcrstats/5fc504d44/mid-year-trends-2020.html
haps://www.economist.com/europe/2021/01/28/how-the-pandemic-reversed-old-
migradon-paaerns-ineurope
haps://publicadons.iom.int/fr/system/files/pdf/migradon-_and-mobility.pdf
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