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ALIMENTAÇÃO ADEQUADA, PODER E DESIGUALDADES: UMA REFLEXÃO ACERCA DA FOME

Atualizado: 31 de out.

ALIMENTAÇÃO ADEQUADA, PODER E DESIGUALDADES: UMA REFLEXÃO ACERCA DA FOME NO DIA MUNDIAL DA ALIMENTAÇÃO


Isadora Borba Paes









“Metade da humanidade não come e a outra não dorme com medo da que não come’’

(Josué de Castro)



O Dia Mundial da Alimentação, celebrado em 16 de Outubro, é imprescindível para que se evidencie a luta histórica pela garantia e efetivação de um dos direitos mais básicos para a sobrevivência humana, o direito à alimentação adequada. Em um cenário no qual a sociedade contemporânea é atravessada por paradoxos gritantes - I. ampliação da capacidade de produção; e II. aumento do número de indivíduos inseridos no espectro da insegurança alimentar - a discussão acerca da perpetuação da fome e de suas respectivas raízes representa uma ação de extrema necessidade.

Inúmeros fatores contribuem para a permanência da fome no mundo, a qual, segundo o documento “The State of Food Security and Nutrition in the World 2023’’, atingiu entre 690 e 738 milhões de pessoas em 2022. Entretanto, o papel das minorias dominantes na caracterização do não acesso à alimentação como um fenômeno natural constitui, dentre outras coisas, um ponto central desta conservação de inércia e uma problemática a ser combatida. Ao naturalizar a fome, entende-se que inevitavelmente uma parcela da população mundial, curiosamente com maior força as que residem no sul global, sempre será atingida e que não há nada a ser feito.



Imagem: https://www.pexels.com/pt-br/foto/homem-sentado-ao-lado-da-parede-1657935/


Empregando as concepções apresentadas por Patricia Hill e Sirma Bilge no livro “Interseccionalidade”, a compreensão da insegurança alimentar - seja ela leve, moderada e/ou grave - como uma ocorrência intrínseca das relações sociais pode estar inserida no que as autoras classificam como a dimensão cultural dos domínios e das relações de poder que permeiam a convivência humana.

No domínio cultural, as desigualdades sociais e econômicas, como as que dão origem ao fenômeno da fome, são tidas como normais e aceitáveis dentro do sistema capitalista, uma vez que possuem a habilidade de satisfazer os interesses do capital financeiro, mesmo que às custas da vida de milhões de indivíduos.

Na esfera da alimentação, os sistemas alimentares, estruturas responsáveis por garantir a segurança alimentar e nutricional das populações, mediante a integração entre atividades envolvidas na produção, distribuição, acesso, entre outras, foram, e são, diretamente impactados por estas relações de poder e pela financeirização do ato de se alimentar, que afastam a alimentação do campo dos direitos humanos fundamentais e a acercam da ideia meritocrática de mérito, capacidade e dever pessoal.

Como a alimentação não é mais vista como um direito, ou seja, entende-se que não precisa ser garantida, a hegemonia do capital financeiro sob todas as dimensões da vida transformou estas estruturas em mecanismos frágeis, facilmente impactados por fenômenos distintos, como as alterações climáticas e crises econômicas, e que anualmente inserem milhões de pessoas no espectro da insegurança alimentar.

Com a expansão desta vulnerabilidade, a concepção de sistemas alimentares resilientes, economicamente, socialmente e ambientalmente sustentáveis que enxerga o direito à segurança alimentar como um direito DE FATO e que se opõem a lógica do cultivo e exportação de commodities, se manifesta como uma ação primordial nas sociedades atuais. Nessa conjuntura, a agricultura urbana e periurbana desponta como uma das alternativas para a construção de comunidades saudáveis e sustentáveis.

Tendo Cuba como um dos grandes exemplos de sucesso, sobretudo após as sanções econômicas, comerciais e financeiras impostas; a agricultura urbana e periurbana integra um modelo de desenvolvimento que insere o sujeito social no centro de todas as ações, assim como se volta para o estabelecimento de um cultivo ecologicamente orientado e um território autossuficiente na produção de alimentos.

Em tempos nos quais os modelos de produção hegemônicos, com a manutenção dos grandes latifúndios e valorização da monocultura e do mercado externo, em detrimento do interno, assumiram o controle de grande parcela da cadeia de manufatura de alimentos, a ascensão destas “novas’’ alternativas aparece como uma possível via para o solucionamento da fome no mundo.

No entanto, como discutido anteriormente, a fome não é um fenômeno natural e sim um produto derivado de uma organização econômica, social e política que detém o interesse em manter os indivíduos presos, como dizia Josué de Castro, no círculo de ferro da fome. Em suma, ideias inovadoras são imprescindíveis, mas é necessário que os Estados, em conjunto com a sociedade civil, atuem na construção de políticas estruturais que sejam capazes de reconstruir o Estado social de direito e promover justiça social para todos os cidadãos do mundo, tendo como base fundadora a garantia de todos direitos humanos fundamentais: alimentação, casa, educação, felicidade.Uma reestruturação sistêmica de “descomercialização” dos direitos da vida digna.

Por fim, parafraseando Herbert de Sousa, o Betinho, [...] a fome é exclusão. Da terra, da renda, do salário, da educação, da economia, da vida e da cidadania. Quando uma pessoa chega a não ter o que comer, é porque tudo o mais já lhe foi negado.


16 de outubro de 2023

Curadoria do Fórum Social Mundial da Saúde e Seguridade Social


Os trabalhos do FSMSSS são revisados por Isadora Borba e Rafaela Venturella De Negri



MATERIAL UTILIZADO

FAO, IFAD, UNICEF, WFP and WHO. 2023. The State of Food Security and Nutrition in the World 2023. Urbanization, agrifood systems transformation and healthy diets across the rural–urban continuum. Rome, FAO. Disponível em: https://www.fao.org/3/cc3017en/cc3017en.pdf


COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. Boitempo Editorial, 2021.


DE CASTRO, Josué. Geografia da fome: o dilema brasileiro: pão ou aço. Todavia, 2022.


Growing greener cities in Latin America and the Caribbean - An FAO report on urban and peri-urban agriculture in the region. 2014. Disponível em: https://www.fao.org/3/i3696e/i3696e.pdf


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