A invisibilidade exposta
A pobreza e a miséria ficam ocultas aos olhos de quem não as quer ver. A população em situação de rua rompe essa invisibilidade ao ocupar as ruas das cidades da América Latina e Caribe, desnudando a violação de seus direitos humanos, a violência e a exclusão social, econômica e cultural que a lógica capitalista impõe. O capitalismo se aperfeiçoa no sentido de produzir cada vez mais riquezas, mas os bens socialmente produzidos são apropriados por uma elite, num ciclo vicioso de concentração de renda e pobreza, ainda mais acentuada nos denominados países periféricos.
A abordagem dessa população tem cunho caritativo desde o período de colonização dos países da América Latina e Caribe, historicamente seguido por medidas de saúde e assistência social com caráter assistencialista. De maneira geral, os países da região não contam com políticas específicas para essa parcela da população. O governo brasileiro criou a Política Nacional da População em Situação de Rua em 2009. Em 2005 o Chile reconheceu a existência de população em situação de rua como questão de Estado, mas a criação do Programa Rua Chile Solidário só ocorreu em 2014. A Constituição Política da Cidade do México, aprovada em 2017, determina a adoção de medidas destinadas a garantir os direitos dessa população e veda ações violentas de qualquer natureza. Embora os recursos alocados não permitam a plena implementação desses dispositivos, trata-se de um avanço.
Todavia, a região vive entre avanços e retrocessos, principalmente nas áreas política e social, o que relativiza a plena implementação dessas políticas. Exemplo disso são governantes que chegam a retirar dessa população o pouco que tem: colchões, cobertores, pertences e até seus documentos, atitude perversa registrada no Brasil e na Argentina. Acrescente-se a esse quadro o fato de cidadãos resistirem a ter albergues e casas de acolhida em seu bairro, por não quererem deparar-se com essas pessoas diariamente ou até alegarem sensação de insegurança com sua presença.
Estudos realizados na Cidade do México detectaram três gerações de famílias vivendo em situação de rua, ou seja, há gerações que não conhecem outra forma de viver, e a sociedade costuma atribuir às próprias pessoas a responsabilidade por sua condição, sem a percepção dos reais fatores que levam a isso. As consequências econômicas da pandemia Covid-19, a falta de sensibilidade política e de competência de governos agravaram o problema e famílias inteiras estão vivendo sob viadutos, barracas improvisadas e outras formas criadas para ter algum abrigo e proteção.
O avanço das políticas destinadas à população em situação de rua está diretamente ligado ao aprofundamento da discussão acerca da origem da desigualdade social. A busca de caminhos em políticas redistributivas de renda avança em governos progressistas e sofrem grandes recuos em governos neoliberais, como ocorre hoje no Brasil. Temos nas ruas pessoas em várias fases da vida, com necessidades comuns, mas algumas são específicas do ciclo de vida em que se encontram.
A falta de moradia não é o único problema dessas pessoas, pois não contam com o mínimo existencial, estão expostas à doença e à violência, não têm trabalho ou fonte de sustento, perderam vínculos familiares ou os têm fragilizados. Nessa realidade, os estereótipos e preconceitos exteriorizam a exclusão, reforçando o ciclo vicioso vivido por essas pessoas, o que os leva a criar suas próprias estratégias de sobrevivência. Uma delas é viver na região central das cidades, que oportuniza alguns trabalhos, ainda que precários e temporários, e onde se concentram construções abandonadas, passíveis de serem usadas como abrigo ou mesmo moradia.
Desprezo por parte sociedade, perda de identidade, de autoestima e até da consciência da condição de humanidade marcam a vida dessas pessoas, cidadãos cobertos pelas Constituições de seus países, por acordos internacionais de direitos humanos, mas que sistematicamente vivem a violação desses direitos. A população em situação de rua vem se organizando em movimentos voltados para informação e reivindicação de direitos e da implementação de políticas públicas específicas e, por mais que parte da sociedade tente fechar os olhos, ela existe e desnuda o que talvez seja a pior face da desigualdade social.
Material utilizado
Derechos humanos de las personas en situación de calle – Poder Edomex
Personas en situación de calle, tragedia casi invisible - Gaceta UNAM
SciELO - Brasil - REFLEXIONES SOBRE LA ADMINISTRACIÓN PÚBLICA Y EL
NEOLIBERALISMO EN NUESTRAMÉRICA, SIGLO XXI

© Francine Orr/Los Angeles Time