A erosão da democracia na Nicarágua
O triste (e corriqueiro) desdém pela democracia nas Américas
A Nicarágua vive uma intensa turbulência política e experimenta uma triste derrocada em suas instituições democráticas. O ápice de tal processo se deu na última eleição para a presidência nicaraguense, por meio da qual Daniel Ortega foi eleito para um novo mandato à frente do Executivo. Realizado no último 7 de novembro, o pleito foi vencido por Ortega, líder da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), com expressiva votação (75% dos votos), fração atingida, contudo, mediante evidentes fraudes eleitorais, como a prisão ou o cerceamento da candidatura de sete outros potenciais candidatos à presidência (inclusive de ex-aliados como Hugo Torres) e o cerceamento da liberdade de atuação da imprensa independente na cobertura do processo eleitoral.
A comunidade internacional não tardou em denunciar a fraude travestida de eleição e em se recusar a reconhecer o novo governo. A ilegitimidade patente do escrutínio eleitoral sequer pôde ser constatada in loco por observadores independentes, vez que o regime impediu a participação de uma missão da Organização dos Estados Americanos (OEA) encarregada, justamente, de fiscalizar a realização das votações. Após a proliferação de comunicados diplomáticos questionando os rumos da democracia na Nicarágua, Ortega anunciou a intenção de desfiliar a Nicarágua da própria OEA, formalizando pedido neste sentido no último dia 19/11. O Conselho Permanente desta entidade votou, na semana passada (05/12), resolução que condena o regime de Manágua e afirma que este vem violando sistematicamente a Carta Democrática Interamericana, o que pode ensejar sua suspensão do organismo caso a saída voluntária do país não se concretize.
O contexto nicaraguense, infelizmente, não destoa do observado cada vez mais na América Latina. Conforme já discutido neste espaço, é crescente o ataque às instituições democráticas no subcontinente, fenômeno que é representado tanto por autocratas tradicionais, como Nicolás Maduro na Venezuela, quanto por líderes populistas de fação “moderna”, como Nayib Bukele em El Salvador. O espectro ideológico ao qual pertence o líder autoritário, ademais, pouco importa para quem se empenha na derrocada das democracias americanas – Maduro, assim como Ortega, se situa à esquerda do panorama político, ao passo que Bukele se identifica como conservador. Em comum, tais lideranças mostram desdém pelo jogo eleitoral-democrático, apelam para a difusão de notícias falsas, visam concentrar o poder no Executivo, cerceiam o pluralismo político e corroem os regimes democráticos não através de golpes de Estado clássicos, mas sim por meio da paulatina erosão das instituições que compõem o funcionamento da democracia.
De revolucionário anti-imperialista a ditador
A história da Nicarágua é indissociável do imperialismo norte-americano na América Latina, assim como o é a própria ascensão de Ortega à liderança nacional. Tendo assumido a presidência do país em 1979, após o sucesso da Revolução Sandinista em derrubar a família Somoza (identificada com a dominação estadunidense no subcontinente) do poder em Manágua, Ortega viria a ocupar o cargo até 1990, levando a cabo reformas que visavam, em princípio, garantir a autodeterminação do povo nicaraguense, como a aprovação de uma nova constituição (1987). Depois, na esteira da chamada “onda rosa” na América Latina, viria a ser novamente eleito para a chefia do Executivo em 2007, posição em que continua, ininterruptamente, até os dias de hoje. À época, os programas sociais de combate à pobreza e à miséria, sobretudo através da redistribuição de renda, melhoraram drasticamente os padrões de vida locais e angariaram intensos elogios internacionais.
Já em 2016, contudo, quando se engajou na busca por um terceiro mandato presidencial em sequência, Ortega passou a contestar as bases do regime republicano e degringolar para o autoritarismo. Empenhou-se em suprimir o dissenso político, acusando-o de ser “pró-imperialista”, assim emulando a linguagem revolucionária dos anos 70 (ocasião em que os opositores do Sandinismo eram acusados de serem alinhados com os EUA). Na tentativa de levar a cabo reformas previdenciárias em 2018, reprimiu violentamente protestos que as questionavam, bem como intensificou a perseguição a opositores, apelando a detenções arbitrárias e à tortura nos estabelecimentos policiais. No esforço de dar maior ênfase ao Estado na condução dos processos econômicos, loteou estatais e subsidiárias entre familiares e partidários da FSLN, o que gerou acusações de nepotismo e de apropriação privada da coisa pública. Isso sem falar, a partir de 2020, no negacionismo em relação à pandemia de COVID-19, sendo que Ortega teria ordenado que médicos em hospitais de Manágua a não usassem equipamentos de proteção individual nos hospitais para que os pacientes não pensassem que a doença era uma ameaça grave.
Inegavelmente, tal quadro guarda intensas similitudes com o chavismo levado a cabo, na atualidade, por Nicolás Maduro na Venezuela. Desde que Maduro assumiu o governo em Caracas (2013), estima-se que o PIB venezuelano sofreu uma queda de assustadores 80%, e é possível que Manágua sofra destino semelhante, vez que as políticas governamentais em curso na Venezuela (corrupção, loteamento de cargos e órgãos públicos e repressão ao dissenso político) são bastante semelhantes às que Ortega tenta instituir na Nicarágua.
Não seria novidade, portanto, a ocorrência de uma completa derrocada econômica no país centro-americano. Tal realidade ainda abriga a possibilidade de o Estado nicaraguense vir a tornar-se pouco ou nada operante – processo que, por sua vez, inexoravelmente levará ao aprofundamento das desigualdades sociais, à queda nos padrões de vida locais e ao abandono de um regime de seguridade social minimante funcional, cenário nefasto para um país que já possui menor desenvolvimento relativo.
Conclusão
Afigura-se urgente a volta da normalidade institucional na Nicarágua, a começar pela realização de eleições presidenciais livres, assim constatadas pela comunidade internacional. O modus operandi que vem sendo levado a cabo pela “administração” Ortega está empenhado em destruir a democracia no país, nos mesmos moldes em que os Somoza faziam até serem derrubados pelos revolucionários liderados pelo próprio mandatário atual.
A triste escalada autoritária na América Central tem, assim, Manágua em seu epicentro. Superar o vicioso ciclo antidemocrático que vendo tendo lugar na América Latina é essencial para o futuro da democracia, do desenvolvimento e da seguridade social no continente americano.
MATERIAL UTILIZADO
https://elpais.com/elpais/2018/12/17/opinion/1545074120_042388.html
https://www.foreignaffairs.com/articles/nicaragua/2018-08-24/how-daniel-ortega-became-tyrant
