Foto: Alejandro Zambrana/Sesai | Ministério da Saúde "DSEI Xavante - Dr.Felix Alberto Moyet Moya". Licença CC BY-NC 2.0
“Eu prometo solenemente consagrar a minha vida ao serviço da humanidade”, este é o início do juramento de Hipócrates, escrito no século V a.C., o qual todo médico proclama ao se formar. Inquestionavelmente este é um juramento muito bonito que preza pela vida e bem-estar dos pacientes, independente da sua nação, etnia, crença ou sexo, no entanto, embora muito repetido pelos médicos do mundo, muitas vezes ele não acaba sendo respeitado.
Atualmente o Brasil possui uma densidade médica superior a 546 mil pessoas e forma aproximadamente 40 mil médicos por ano, este montante considerável de funcionários estão trabalhando cotidianamente para a saúde do brasileiro, tanto na rede pública quanto na privada. Ao comparar o número de médicos atuantes no brasil e o número de habitantes, tem-se uma proporção de 2,56 médicos a cada 1000 habitantes, valor compatível com o de países como Estados Unidos (EUA), Canadá e Japão. Embora não seja o ideal que a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) sugeriu, 3,5 médicos a cada 1000 habitantes, é um valor digno e compatível com a realidade brasileira de formação médica. O real problema está na distribuição destes médicos no território nacional.
Em fevereiro deste ano, o Conselho Federal de Medicina (CFM) lançou uma plataforma para democratizar o acesso às informações referentes aos profissionais de medicina no Brasil. Conhecida como Demografia médica, esta plataforma promete, de uma forma simples e moderna, conter as informações sobres os médicos em atividade no país, como o número total de profissionais, razão por habitante, divisão por sexo e muito mais. Esta plataforma promete ajudar a população, os estudiosos sobre demografia e os gestores de saúde pública, uma vez que será possível achar os dados completos em uma única plataforma. Contudo, esta tecnológica plataforma acabou por revelar a realidade discrepante no que tange os locais de atuação dos profissionais no país.
Primeiramente, cabe estipular o perfil do médico brasileiro, segundo os dados desta plataforma, atualizada em fevereiro de 2023, os profissionais médicos brasileiros são em sua maioria homens, embora o número venha invertendo devido ao aumento de formandas mulheres que estão entrando no mercado de trabalho, a idade média é de 44 anos a maioria formou em instituições particulares e no próprio país. As estatísticas também mostraram que o número de profissionais se quintuplicou nos últimos 40 anos, tendo uma entrada maior do público feminino em relação ao masculino a partir de 2021. Este perfil do médico brasileiro não destoa muito do global e condiz com a tendência mundial desta área do conhecimento.
Mas antes de entender a distribuição médica, deve-se analisar alguns fatores que corroboram com a realidade escancarada pela plataforma. No ano de 2020, o Brasil contava com 357 escolas médicas que juntas oferecem um número superior a 37 mil vagas de graduação. Embora seja um número considerável de vagas vê-se uma maior concentração das escolas médicas nas regiões sudeste e sul, como mostrou um estudo realizado por profissionais da Universidade Federal do Maranhão, em que foi observado que as cidades de grande porte populacional abrigava a maioria das universidades e apenas a região sudeste detinha de 41,8% das escolas médicas, enquanto a norte e nordeste juntas não passava dos 16,5%.
Essa realidade destoante é reflexo de um governo que desde a era militar brasileira direciona maior investimento para a região sudeste, especialmente na área do conhecimento. Cabe ressaltar também que o ranking das melhores faculdades de medicina do Brasil, a posição da primeira faculdade que não pertence a região sudeste é a 9° posição, ocupada pela Universidade Federal de Pernambuco, sendo que esta ocupa a 41° posição ao se tratar em número de professores mestres e doutores que lecionam. Esta colocação comprova que os estados além do Sudeste possuem menor incentivo ao estudo e aprofundamento, uma vez que assim como a disposição universitária, os estados com maior número de bolsas de doutorado e mestrado são São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.
Ao ponderar exclusivamente a distribuição dos médicos no país, é possível ver que o estado de São Paulo, onde se encontra o maior número de profissionais atuantes, tem-se uma densidade médica a cada mil pessoas de 5,6, valor este superior a países desenvolvidos como Alemanha, Dinamarca e Suécia. Contudo, ao observar estados como Bahia e o Amazonas, esta média cai para menos de 2 médicos a cada mil, e estes não são os estados com menos médicos registrados pelo observatório da plataforma. De maneira similar, ao analisar esta distribuição no interior dos estados, o número chega a 0,2 médicos a cada mil habitantes em Roraima, Amazonas e Amapá, não sendo suficiente para atender nem mesmo 3% da população, em outras palavras, atualmente no estado inteiro de Roraima há 33 médicos atuantes, enquanto em São Paulo ultrapassa os 83 mil médicos.
Outro fator que assombra os estados fora do eixo sudeste é a falta de médicos especializados. Segundo uma pesquisa realizada por profissionais da Universidade São Paulo (USP), a residência médica - principal formadora de especialistas - não acompanhou a abertura das escolas médicas no Brasil, o que gerou uma carência por profissionais nas diversas áreas, em especial na anestesiologia e na cirurgia geral, fato confirmado pela Associação Médica Brasileira (AMB) que revelou um número superior a 211 mil médicos sem título de especialização. Este mesmo estudo apontou que o número de anestesiologistas no Maranhão é 5 vezes menor que no Rio de Janeiro, esta realidade tem impacto direto na saúde da população, uma vez que centenas de cirurgias são desmarcadas anualmente pelo SUS devido à falta de anestesiologistas e, a fila no SUS, que já ultrapassou meio milhão de pessoas aguardando cirurgias eletivas no ano de 2023.
A questão que se faz presente agora é, o que faz com que um médico não escolha estas regiões para atuação? O estado do Amapá possui a segunda maior renda mensal declarada, aproximadamente 31 mil reais por mês, e no ranking dos 5 estados com maior salário médico, 4 estão fora do sul e sudeste do país, logo o problema não deve ser o salário a receber. Outra possibilidade é a infraestrutura dos locais de atendimento, embora grande parte das Unidades Básicas de Saúde (UBS) e hospitais do Brasil não apresentem alto nível de estrutura, a região norte e nordeste possuem uma infraestrutura inferior aos demais estados. Devido a esta precariedade que muitos médicos optam por atenderem apenas nos grandes centros urbanos e nos estados com melhor estrutura na rede pública.
A plataforma demografia médica, muito além do que agrupar os dados, revelou um problema de saúde pública, ela mostrou que a maior parte do Brasil se encontra sem a assistência necessária à saúde, podendo ficar até 10 anos esperando por uma cirurgia no SUS. Com este simples agrupamento de dados, foi possível notar que o Programa Mais Médicos, que visa trazer médicos para as áreas que carecem de profissionais, é urgente e necessário para assegurar o direito à saúde para a população.
Em 2019, o governo lançou um programa em que a região Norte e Nordeste, mais afetadas pela falta de médicos, teriam 4 mil médicos recebendo salários de até 31 mil para que mais profissionais fossem motivados a irem para o interior e para estas regiões, no entanto, apenas um pouco mais das metades das vagas foi preenchido. Já em 2023, o atual governo optou por aumentar as vagas para o programa Mais Médicos, dando prioridade para profissionais com mestrado e doutorado e permitindo o pagamento da dívida do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES). Embora recente, aparenta ter uma boa repercussão, uma vez que mais de 34 mil médicos se inscreveram para esta edição do programa.
Segundo o boletim anual que o Ministério da Saúde (MS) libera, mais de 300 mil pessoas morrem anualmente por Hipertensão Arterial, esta doença que tem tratamento e que atinge mais de 30 milhões de brasileiros é causa de tantos óbitos devido também a carência de médicos para atender a população, como a demanda por profissionais da rede básica é alto muitos pacientes aguardam meses por uma consulta, o que pode agravar doenças crônicas como a hipertensão arterial e levar centenas de pessoas a óbito. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Datafolha, em 2018, mais de 75% dos brasileiros já aguardam mais de 6 meses por atendimento no SUS, este tempo é suficiente para agravar o quadro de pessoas com Diabetes Mellitus, neoplasias, tuberculose, doenças cardiovasculares e pulmonares e representar risco de morte a elas, não obstante da realidade apontada neste texto, a região com maior prevalência das doenças supracitadas é a região norte, que também possui uma das menores relações médico/habitante. De maneira similar, a região Centro Oeste, que também apresenta esta relação desfavorecida, apresenta uma taxa de mortalidade por Diabetes Mellitus muito próxima à registrada pela região em 1999, o que demonstra que a negligência enfrentada pela região impediu que em 24 anos o perfil de óbitos pela doença mudasse.
O apagamento das regiões brasileiras além do Sudeste corrobora para a violação dos direitos básicos do ser humano, contamina a população com pré-conceitos e reforça as desigualdades sociais. A necessidade de mais propaganda envolvendo estas regiões e os programas que buscam garantir a atuação médica nestes locais tem se mostrado necessária, para que as demais regiões brasileiras saibam da realidade que assombra tantos brasileiros e possam se comprometer a levar a saúde até eles. Muito além do que uma busca por melhores salários, deve haver um comprometimento com a saúde humana, posto que, em 2022, o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), revelou que 72 mil pessoas ainda não possuem acesso ao SUS e, enquanto esta parcela social não conseguir o direito básico à saúde garantido o juramento de Hipócrates não passará de um discurso vazio repetido incansavelmente pelos médicos.
Raquel Marques Landgraf é acadêmica de medicina e curadora do FSMSSS, com participação em ações de saúdes orientadas para a prevenção de câncer de mama, prevenção de câncer de próstata e ações de mapeamento da hipertensão arterial.
Todas curadorias são revisadas pelas coordenadoras Isadora Borba e Rafaela De Negri.
Fontes:
Brasil Norte Comunicação - BCN: Norte e Nordeste terão 4 mil médicos com salário de até R$ 31 mil. Publicado em 01 de agosto de 2019.
Governo Federal: Programa Mais Médicos: Presidente Lula sanciona lei do Mais Médicos com criação de 15 mil novas vagas em 2023. Publicado em 14 de julho de 2023.
Jornal da USP: Número de médicos no Brasil aumenta, mas distribuição é desigual. Publicado em 20 de setembro de 2023.
MACHADO, Renata. et al. Prevalência das principais doenças transmissíveis e não transmissíveis que acometem a população residente na região norte de Brasil e relação com nutrição. Anais do EVINCI - UniBrasil: v. 5 n. 1 (2019): Caderno de Resumos.
Ministério da Saúde: Sistema Nacional de Vigilância em Saúde: Relatório de Situação: Goiás. Publicado em 2011.
OLIVEIRA, Bruno; LIMA, Sara; PEREIRA, Marina; PEREIRA JUNIOR; Gerson. EVOLUÇÃO, DISTRIBUIÇÃO E EXPANSÃO DOS CURSOS DE MEDICINA NO BRASIL (1808-2018). Scielo Brasil: 18 Fev 2019. DOI: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00183
SOARES NETO, Joaquim; MACHADO, Helena; ALVES, Cecília. O Programa Mais Médicos, a infraestrutura das Unidades Básicas de Saúde e o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal. Scielo Brasil: Set 2016. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232015219.16432016
Sociedade Brasileira de Dermatologia, Regional Fluminense - SBDFL: Brasil tem 180 mil médicos sem título de especialista.
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