A autonomia do Banco Central e a seguridade social
O dilema macroeconômico fundamental
A promulgação da Lei Complementar (LC) nº 179/2021 e o reconhecimento de sua constitucionalidade pelo STF na última semana (ADI 6.696/DF) tornam fato consumado o novo regime de atuação do Banco Central do Brasil (BACEN), agora dotado de maior autonomia decisória e institucional. Para a seguridade social, conforme expresso nos artigos 194 a 204 da Constituição Federal de 1988, a atuação da autarquia federal é de suma importância, pois as políticas monetárias formuladas pelo Conselho de Política Monetária (COPOM) e executadas pelo BACEN influenciam diretamente os níveis gerais de inflação e desemprego, fatores essenciais para o poder de compra e a qualidade de vida da população, o que traz repercussões, portanto, na justiça social brasileira.
Antes de elucidarmos o que significa a autonomia do Banco Central e suas implicações concretas para a seguridade social, é importante contextualizar o tema e providenciar uma breve explicação sobre a política monetária. Basicamente, trata-se da política econômica responsável por controlar a quantidade de moeda circulante no país. Grosso modo, ela se dá de duas formas: a política monetária expansionista aumenta a oferta de moeda em circulação no país, diminuindo as taxas básicas de juros e, assim, incentivando a demanda, ao passo que a contracionista produz os efeitos exatamente inversos, aumentando as taxas de juros e desaquecendo a economia, o que ajuda a controlar os preços. Quando emprega uma política contracionista, portanto, o Banco Central geralmente tenta controlar o processo inflacionário por meio da redução de moeda disponível para uso da população em geral.
A autonomia estabelecida na legislação mencionada consiste, basicamente, na estipulação de mandatos fixos e não-coincidentes com o do Presidente da República para os presidentes do BACEN, na vedação de sua exoneração imotivada e na ausência de vinculação ministerial da entidade. Dessa forma, o Banco Central atuaria de maneira autônoma na consecução dos seus objetivos institucionais, sem submissão às pressões políticas do governo federal.
Conforme previsto no art. 1º da LC 179, a atribuição essencial do BACEN é assegurar a estabilidade de preços – ou seja, diminuir os níveis de inflação. Tal tarefa deve ser cumprida sem prejuízo do zelo pela estabilidade, da suavização das flutuações do nível de atividade econômica e do fomento ao pleno emprego. É em relação a esta última missão institucional que podem surgir problemas no futuro.
A relação inversamente proporcional entre inflação e desemprego é uma das mais conhecidas na economia, estando expressa na famosa “Curva de Philips”. Afinal, maiores níveis de atividade econômica (patamares menores de desemprego) estão associados a uma maior demanda por bens, serviços e salários, incentivando o aumento generalizado dos preços dos produtos e dos insumos produtivos.
Ao se estabelecer o regime de autonomia da autoridade monetária, a pretensão é de dotar o BACEN de maior margem de manobra para atuar na contenção da inflação, tomando medidas contracionistas na ocasião de índices elevados de preços, como vem acontecendo recentemente no Brasil.
Os custos de tais medidas anti-inflacionárias incluem o desincentivo ao investimento doméstico (os juros mais elevados encarem os empréstimos, por exemplo) e uma possível retração econômica, o que desencoraja a tomada desse tipo de decisão monetária por parte de governantes eleitos, ainda mais no momento atual da economia brasileira. Afinal, a situação é de inflação crescente e desemprego estabilizado em patamares elevados, cenário que se desenha desde bem antes da pandemia de COVID-19.
O chamado “custo social do combate à inflação” reside justamente nos seus efeitos colaterais expressos na Curva de Philips, com o aumento do desemprego à medida que se reduz a inflação. Em última instância, trata-se de solução que, apesar de conter as deletérias pressões inflacionárias, acaba relativizando a proteção social aos desempregados que consta dos artigos 7º, II e 201, III da Constituição Federal, sobretudo em relação à reinclusão destas pessoas no mercado de trabalho.
A autonomia do Banco Central na contenção dos preços e a relação entre seguridade social e inflação
A aprovação do projeto de autonomia é tributária do pensamento econômico liberal formulado por Milton Friedman, Edmund Phelps e Robert Lucas, pensadores vinculados à Escola Econômica de Chicago. Relativizando a acepção clássica da Curva de Philips, tal linha defende que a atuação de uma autoridade monetária efetivamente compromissada com o combate à inflação (o que seria garantido pela autonomia do BACEN) implica uma considerável diminuição dos riscos inflacionários, diminuindo a necessidade de sacrifício social, expresso em termos de desemprego, para conter o aumento nos níveis de preços.
Neste sentido, ao sinalizar a pronta atuação para conter uma inflação crescente no caso de ser necessário fazê-lo, o Banco Central deixaria os agentes econômicos mais seguros quanto ao aumento dos preços, assim suavizando os eventuais riscos inflacionários.
Apesar de debates acerca da validade desse pensamento terem sido veiculados durante o processo legislativo (voz importante foi levantada, nesse sentido, pelo senador José Serra – PSDB/SP), muito pouco se aventou acerca das consequências do aprofundamento desse sistema para a seguridade social de maneira geral.
Em relação ao fenômeno inflacionário propriamente dito, é certo que a inflação afeta mais diretamente as populações pauperizadas. O aumento excessivo dos preços que está em curso no Brasil tem recaído majoritariamente sobre os gêneros alimentícios e, à medida que as populações de baixa renda alocam boa parte de seus recursos para a aquisição destes bens essenciais, há importante perda de recursos do orçamento das famílias. Conter a inflação consiste, portanto, em medida de justiça social, e recompor o poder de compra das populações de baixa renda é fundamental para a garantia dos mínimos sociais.
A pressão inflacionária poderia ser compensada, sem perda de poder de compra, pela reposição da renda dos obreiros mediante reajustes salariais. Contudo, as entidades sindicais, responsáveis pela defesa coletiva dos trabalhadores, assim atuando no âmbito das Convenções e Acordos Coletivos do Trabalho (art. 611 da CLT), vêm paulatinamente perdendo capacidade material para fazê-lo – tendência que é ilustrada, por exemplo, pela retirada da obrigatoriedade de recolhimento do chamado imposto sindical, novidade introduzida pela Lei nº 13467/17, conhecida como a Reforma Trabalhista.
Ademais, os sindicatos também são compreendidos como possíveis agentes inflacionários. Segundo uma lógica puramente economicista e anti-inflacionária, os anseios de recomposição salarial devem ser combatidos ou, ao menos, minimizados – afinal, o aumento do preço do trabalho, expresso em salário, tenderia a gerar um efeito cascata nos preços dos demais bens (na forma de um efeito multiplicador), dado o aumento do meio circulante.
A correção dos rumos em tempos de crise e a política de assistência social
A seguridade social contempla ações relativas ao tripé saúde, previdência e assistência social e, numa perspectiva ampliada, relaciona-se com as condições de trabalho da população, alvo de atividades do poder público no sentido de prover condições laborais dignas à população. Recentemente, ações de proteção social básica e especial têm sido alvos de constantes ataques, veiculados através de políticas públicas baseadas em aportes acríticos da ciência econômica, que desconsideram os efeitos práticos de tais medidas e acabam se sobrepondo às políticas sociais.
Trata-se evidentemente do caso da Reforma Trabalhista, que procurou “dinamizar as relações de trabalho”, adaptando-lhes aos imperativos da acumulação flexível (fracionamento de horas de trabalho, redução dos encargos patronais, etc.), mas desconsiderando a precarização destas mesmas relações que se seguem, o que coloca o trabalhador em posição de extrema vulnerabilidade. Trata-se, em realidade, de verdadeira “contrarreforma”, que implica uma miríade de retrocessos em matéria de proteção dos obreiros.
Essa situação também pode se afigurar no que diz respeito à autonomia do Banco Central. Na seara econômica, a autonomia da instituição tem como objetivo a contenção do emprego política monetária como instrumento econômico. Igualmente, há a possibilidade de esse viés anti-inflacionário implicar amarras para a política fiscal do Estado, vez que o endividamento público está igualmente ligado à inflação e que a emissão de moeda é método comumente empregado para cobrir déficits fiscais.
Há, com essa limitação à política fiscal, no Brasil já em plena vigência desde a promulgação da Emenda Constitucional nº 95/16, responsável por instituir o novo regime fiscal apelidado de “Teto de Gastos”, um possível prejuízo à ação contracíclica do Estado em momentos de crise, tal qual proposto pelo paradigma keynesiano, o qual propõe a intervenção do Estado na economia e rejeita o paradigma liberal que vigorou até a crise de 1929.
Afinal, o aumento dos gastos do governo é instrumento empregado para incentivar a demanda doméstica em períodos de depressão econômica, como é o caso do auxílio emergencial pago pelo governo brasileiro no contexto da crise pandêmica e que se estenderá até outubro. A expansão fiscal serve, também, para amenizar miserabilidade cada vez maior da população trabalhadora, principalmente a que é considerada descartável para a inserção no mercado de trabalho. Igualmente, é utilizada para o amparo estatal àqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade e risco social, de forma a proporcionar-lhes condições mínimas de sobrevivência, como é o caso do Benefício de Prestação Continuada (BPC), previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS, Lei nº 8742/93) e que foi atacado com os novos critérios da Lei Federal (14.176/2021), que dificultam o acesso dos idosos, pessoas com deficiência e incapacidade laborativa ao BPC.
Em um cenário de absoluta contenção fiscal, afigurar-se-ia difícil a saída de crises econômicas como a atual e perpetuar-se-iam desigualdades inaceitáveis para um regime que prega a justiça social como fundamento da República – em suma, uma quebra do paradigma que remonta a Beveridge (1942), o estatista inglês que cunhou os fundamentos básicos da proteção social ampliada, e que inspirou a retomada econômica do pós-guerra, propiciou a moderação dos ímpetos capitais e criou condições para a melhoria da vida da classe trabalhadora através de ações em matéria de seguridade social.
Considerações Finais
A autonomia do Banco Central é assunto que não deve ficar restrito aos círculos econômicos e financeiros. Trata-se de tema que possui importantíssimas, mas não tão óbvias, repercussões para a seguridade social, seja nas esferas inflacionária, laboral ou fiscal.
Os desafios são imensos e a conciliação entre os a necessidade de contenção da inflação, a continuidade dos gastos do Estado na correção de iniquidades e as garantias de seguridade do trabalhador, desempregado ou não, é uma necessidade, ainda que de difícil cumprimento. Urge, acima de tudo, trazer os desdobramentos da LC 179 à tona e não os relegar a um debate puramente economicista.
Material utilizado
https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/forum/opiniao-jose-serra-autonomia-dobcb/?fbclid=IwAR1ozD8PPPh0y9zFiH9S0cLl9tqR1fGQndEuxpZmnimNy1sxKVVkUbhuOU https://www.conjur.com.br/2021-mar-19/opiniao-autonomia-banco-central-questaodelicada https://www.politize.com.br/impactos-da-autonomia-do-banco-central/