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Foto do escritorDainara Bispo

À sombra do passado: Reflexões acerca da desigualdade social no Peru

Foto: Diego Delso. Licença: CC BY-SA 4.0


A vida política e social na América Latina tal como conhecemos hoje se desenvolveu em torno de processos históricos marcados por invasões, despossessão, exploração, extermínio e aculturação dos povos que habitavam a região antes dos europeus buscarem além-mar soluções para seus problemas internos. Retrato de longos séculos de dominação, observamos, então, a emergência de “projetos” de sociedades disformes e  inacabados, apoiados em estruturas socioeconômicas essencialmente desiguais. No Peru, a desigualdade é percebida em um amplo quadro de concentração de renda e ausência de representatividade política que se caracteriza por uma notória cisão étnico-espacial.


Com aproximadamente 30 milhões de habitantes, sete a cada dez pessoas vivem na pobreza ou em situação de vulnerabilidade à pobreza, de acordo com dados fornecidos pelo Banco Mundial em 2023. Isto significa que 29% da população peruana não possui renda suficiente para cobrir gastos como a cesta básica de consumo e serviços essenciais, enquanto 31% desta corre o risco de cair na pobreza se atingida por desastres naturais, perda de emprego ou doenças. A situação é ainda mais grave entre  indígenas e afro-peruanos, sobre os quais o índice de pobreza monetária apresenta uma elevação de 8 pontos percentuais em comparação a grupos formados por brancos e mestiços. Em relatório publicado em 2010, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) revelou ainda que 78% das crianças e adolescentes indígenas do país viviam na pobreza total, na proporção de 40% dos falantes de espanhol, e 32% delas não frequentavam a escola.


Dados oficiais do Instituto Nacional de Estatística e Informática do Peru (INEI; 2023), mostram que, juntamente com o elemento étnico-racial, a desigualdade no país adquire contornos espaciais bem estabelecidos, que diferem zonas subdesenvolvidas de centros dinâmicos do poder político e econômico. Em algumas regiões do Peru, sobretudo nas áreas andinas, mais de 80% da população não tem acesso a serviços básicos como água potável, eletricidade, serviços de telefonia móvel e internet. Cenário que contrasta profundamente com as condições encontradas em Lima e na província constitucional de Callao, onde 27,5% e 23,7% de sua respectiva população enfrenta o mesmo problema. De modo geral, 73% da população peruana não têm acesso à água tratada e 50,5% à energia elétrica; 21,6% não dispõe de sistemas de esgoto e saneamento; ao mesmo tempo que 45,7% ainda utiliza combustíveis sólidos poluentes para cozinhar, como carvão, lenha e estrume, substitutos para o inacessível gás GLP. Em zonas rurais a água tratada é um recurso raro, ausente em 97,5% dos domicílios, enquanto 59,9% destes não são conectados ao sistema público de esgoto. 


Todos esses números nos ajudam a desenhar um panorama da desigualdade social estabelecida no Peru. Mas, é um olhar sobre a capital que nos permite captar a complexidade das nuances que a estruturam. Em Lima, moradores de bairros pobres e assentamentos informais tiveram que conviver com a existência de um muro separando-os das zonas urbanizadas, do centro turístico, por quase quatro décadas, até sua destruição em 2019. Popularmente conhecido como o “Muro da Vergonha” e símbolo máximo da estratificação social no Peru, a barreira de três metros de altura coberta de arame farpado, que se estendia por dez quilômetros em torno dos morros da cidade, foi construída nos anos de 1980 pelos próprios moradores das áreas mais nobres, em um contexto de crescimento nos índices de violência urbana. O objetivo, está claro, era impedir os habitantes de zonas mais carentes de frequentar esses lugares, marginalizando e estigmatizando comunidades inteiras.


Em 2015, a ONG Oxfam calculou que moradores de bairros pobres de Lima chegam a pagar dez vezes mais para ter acesso à água do que os residentes de zonas abastadas. O custo extra seria fruto da falta de infraestrutura na cidade, uma vez que em muitos lugares não há sistemas de distribuição de água integrados às residências, levando ao uso sistemático de caminhões pipa. Diversos bairros, frequentemente excluídos dos grandes projetos de planejamento urbano, são atingidos recorrentemente por deslizamentos de terra causados por terremotos ou tempestades severas, gerando em seus habitantes um sentimento constante de incerteza e medo. 


 Mesmo anos após sua demolição, observamos as marcas deixadas por décadas (ou séculos) de ações e omissões, responsáveis pela perpetuação de uma sociedade fragmentada e desconexa, uma amostra simbólica da realidade encontrada em todo o país. A volatilidade característica das instituições políticas e o enfraquecimento da economia decorrente da pandemia de Covid-19 são apontados por muitos especialistas como as causas da deterioração da situação social no Peru nos últimos anos. 


  • Paradoxo econômico: crescimento versus desigualdade 

Detentor das maiores reservas de  prata do mundo e das maiores reservas de ouro, chumbo e zinco da América Latina, o Peru ocupa atualmente a sexta posição entre as economias da região. Com atividades econômicas concentradas na exploração de recursos minerais e na agroindústria orientadas à exportação, o país registrou um crescimento econômico acima da média mundial na primeira década do século XXI. Seus incríveis resultados macroeconômicos estariam ligados a um contexto internacional caracterizado pelo aquecimento do mercado mundial liderado pelo crescimento de economias emergentes, especialmente da China e da Índia. Em linhas gerais, nesse período, os países especializados na exportação de commodities agrícolas, de petróleo e seus derivados, bem como de metais e minerais, foram beneficiados com uma supervalorização dos preços de tais produtos em decorrência do aumento de sua demanda no mercado externo (KACEF;LÓPEZ-MONTI, 2010).


Com anos de contas superavitárias, o Peru conseguiu expandir suas reservas internacionais de capital. Entretanto, a liquidez em abundância na economia não beneficiou as camadas sociais mais vulneráveis. Longe disso, enquanto o consumo dos ricos aumentou em 6%, o salário mínimo permaneceu estagnado e a informalidade definiu o acesso ao mercado de trabalho de três em cada quatro indivíduos. Em termos práticos, durante o boom econômico no país os salários da classe A chegaram a alcançar um valor 20 vezes maior do que os salários da classe E. Assim, estaríamos diante de um paradoxo típico da dinâmica capitalista, no qual crescimento econômico pressupõe a ampliação das assimetrias sociais.


Posicionado na periferia do sistema capitalista mundial e, portanto, suscetível às oscilações do mercado internacional, o Peru viu seu avanço econômico desacelerar frente às disputas comerciais entre China e Estados Unidos, a eclosão de uma pandemia e o acirramento de conflitos regionais na Europa e Oriente Médio. Entretanto, foi a escalada das tensões políticas no âmbito interno, com a troca de seis presidentes em seis anos, o fator responsável por colocar a economia do país na crise de recessão atual, levando diversos grupos sociais às ruas em 2023, em protestos contra o declínio da condição social, bem como da falta de coerência e de representatividade política. 


  • Crise institucional e polarização na política peruana

O Peru vem enfrentando um cenário de forte instabilidade política, assinalado pela renúncia ou deposição de todas as figuras que assumiram a presidência do país nos últimos 30 anos. A associação com escândalos de corrupção, violação dos direitos humanos e a instauração de processos de incapacidade administrativa controversos estão no cerne dessa crise institucional que vem gerando na população um crescente descontentamento com a classe política no comando do país. 


Em 2023, ano em que diversas manifestações populares ocuparam as ruas do Peru, pesquisas mostram que 80% da população não se sente representada pelos diferentes poderes políticos, Executivo ou Legislativo, na medida em que suas demandas mais urgentes, seja por melhorias na distribuição de renda ou acesso a serviços essenciais de qualidade, não são acolhidas e transformadas em projetos concretos. Regidos por um sistema semipresidencialista, no qual o Presidente assume o papel de chefe de estado e o Primeiro Ministro, o de chefe de governo, esse distanciamento entre autoridades políticas e grande parte da sociedade peruana está ligado diretamente às limitações do desenho institucional da nação. 


Na prática, enquanto o Presidente, figura eleita pelo voto direto, tem funções como dissolver o parlamento, cuidar da política externa do país, chefiar as forças armadas e vetar leis; cabe ao Primeiro Ministro, escolhido de forma indireta pelo parlamento, a formulação de políticas públicas, econômicas e sociais, bem como a administração de assuntos internos. Assim, a competência para criar planos e programas abrangentes, capazes de transformar a realidade social do país, se concentra nas mãos de um ator cujos ideais políticos e objetivos de governo podem não estar alinhados com as aspirações das grandes massas, resultando em uma forte polarização política. 


Nos dias atuais, a fragmentação dos interesses sociais, e consequente ausência de uma identidade nacional comum, juntamente com a posição periférica da economia peruana no sistema internacional, são fatores que alimentam a desigualdade estrutural no país. Não obstante, acreditasse que a falta de rupturas significativas com as estruturas de dominação colonial lançou as bases  para a constituição daquilo que se tornaria a sociedade peruana contemporânea, com todas as suas cicatrizes e assimetrias (COTLER, 2003).

 

  • Rupturas e continuidades na formação social do Peru

Ao longo da história moderna, a formação nacional do Peru foi condicionada por processos políticos e sociais ambivalentes, pautados por momentos de reafirmação ou contestação parcial dos arranjos institucionais vigentes. Aos trancos e barrancos, estes mantiveram a segmentação da sociedade como sustentáculo do ordenamento estamental independentemente das forças políticas no poder.


Com uma população composta pelos povos nativos do continente, por pessoas negras escravizadas, além dos espanhóis peninsulares e seus descendentes, durante o período colonial a população peruana passou por um violento processo de estratificação ao ser dividida hierarquicamente em estamentos. Nesse esquema organizacional, as pessoas foram posicionadas de acordo com o seu nascimento, condição que determinava seus status na sociedade, isto é, quais atividades econômicas podiam ser exercidas por cada indivíduo, bem como suas obrigações, direitos e, principalmente, os privilégios aos quais teria acesso (ou não). Essa estruturação apoiava-se na premissa ideológica de que o bom funcionamento de uma sociedade dependia da especialização dos indivíduos no cumprimento de funções-chave para o desenvolvimento econômico e social do território. Nesse processo, enquanto os nobres da península e seus descendentes assumiram as posições mais elevadas do estrato social, grande parte da população, sobretudo indígenas e negros, foi incorporada violentamente em posições de servidão e exploração que atendiam aos interesses econômicos e políticos da classe dominante, seja na forma de mão de obra ridiculamente barata ou através do pagamentos de tributos e prestação de serviços aos grandes senhores de terras.


A fragmentação da sociedade, e o decorrente controle exercido pelas forças dominantes sobre as classes mais vulneráveis, continuou como objeto de desejo da emergente aristocracia criolla no contexto de esfacelamento dos grandes impérios europeus. Logo, o processo de independência do Peru foi caracterizado como um movimento contra-revolucionário que visava controlar possíveis levantes das massas subalternas e invariavelmente manter o status quo da dinâmica nacional. Naquele momento, o objetivo das elites que apoiaram o movimento de independência não era subverter a ordem em vigor, não havia interesse em abandonar a lógica de estratificação e submissão social.  Ao contrário, buscava-se a centralização política sob o domínio de uma nova “realeza” local. 


  Ainda no século XIX, com a disseminação de valores liberais em diversas partes do mundo, o choque de ideologias conservadoras e progressistas teria provocado na recém formada república peruana um fenômeno descrito por Cotler (2003) como “feudalização política”, responsável por conservar as assimetrias de poder na sociedade e impedir a formação de uma nação verdadeiramente justa e igualitária. Nesse período, a medida em que nenhum grupo social dispunha de poder político e econômico suficiente para impor as diretrizes por meio das quais se desenvolveria o ordenamento institucional do país, as relações políticas, econômicas e sociais do Peru foram se reestruturando em torno de uma lógica clientelista. Segundo esta, chegavam ao poder as figuras que conseguiam o maior aporte financeiro e bélico por parte de grupos que, naquele momento, compartilhavam interesses em comum. Visto que não possuíam a influência e os recursos necessários para colocar no poder líderes capazes de defender seus próprios interesses, os estratos mais pobres da população continuaram a ver seu destino -  seus direitos e obrigações - determinado por aqueles que os enxergavam apenas como um recurso a ser inesgotavelmente explorado, banalizado e marginalizado. 


Todos esses processos de configuração e reconfiguração da sociedade peruana, ao longo do tempo, mostram que a formação do Peru enquanto uma nação não conseguiu romper com as raízes coloniais que a fundaram. De modo contrário, a situação de profunda desigualdade em que se encontra a população atualmente deve ser entendida como um estado de coisas construído por sucessivos episódios de exploração e dominação sobre estratos sociais específicos, com vistas a atender interesses de classes que se colocam em posições superiores em decorrência de seu poder aquisitivo e influência política.


 Desde o princípio, a segregação entre os povos originários e hispano-descendentes perpetuou um sentimento de diferenciação que impediu a formação de uma consciência identitária nacional. O Peru, assim como muitos países latinos, é uma nação que sustenta um ideal bem distorcido de sociedade e, consequentemente, da atribuição de deveres e direitos civis. Cortar os laços com esse passado, romper com a profunda lógica de dominação que fundamenta seus arranjos socioeconômicos, é sem dúvidas uma tarefa muito difícil, uma que possivelmente nunca será realizada, mas que é imprescindível para cessar as desigualdades sociais no país. Qualquer outra atitude frente a esses problemas será um mero paliativo, uma ação tomada para manter o gigante popular adormecido, sob controle e ass manifestações populares de 2023 são uma indicação de que ele está bem consciente. 


Dainara Bispo é analista de relações internacionais e pesquisadora do ObservActiva. O foco de sua pesquisa é Paradiplomacia, Cooperação Internacional Descentralizada e Organizações Internacionais, Estudos Urbanos e o Sul Global.


Todas curadorias são revisadas pelas coordenadoras Isadora Borba e Rafaela De Negri.


Referências:

COTLER, Julio. Peru: classes, Estado e Nação. Brasília : Funag, 2006. 344 p. Acesso: https://funag.gov.br/loja/download/309-Peru_Classes_Estado_e_Nacao.pdf

KACEF, Osvaldo; LOPÉZ-MONTI, Rafael. A América Latina e a crise internacional : algumas considerações sobre a política macroeconômica. Revista Tempo do Mundo,v. 2 , n. 1, abr. 2010. Acesso: https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/6226




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